quinta-feira, fevereiro 12, 2009

A intenção de "fazer" literatura


Foi um êxito de vendas em Itália e teve uma recepção muito positiva por parte da crítica. Falo de Con le Peggiori Intenzioni (2005), de Alessandro Piperno, livro que a Editorial Presença traduziu no final de 2008. Sobre este "romance", não será errado considerar que ele coloca, fundamentalmente, dois tipos de problemas: 1) problemas que se prendem com o modo como deve ser tratado (literariamente tratado) o tema da identidade judaica; 2) problemas que dizem respeito a uma dimensão auto-reflexiva da escrita e que, em última instância, glosam a impossibilidade de voltar a escrever um grande romance, i.e., a impossibilidade de voltar a escrever como Tolstoi ou Proust. Relativamente ao primeiro problema, a solução de Piperno consiste em apresentar uma perspectiva singular, hiperbólica mesmo, mostrando que os medos de um adolescente («Medo de não ser um homem. [...] Medo de ficar atolado neste pântano de erótica hesitação») podem parecer-se com o medo (real) de um habitante de Telavive. Noutra passagem, e a respeito de uma personagem muita dada ao convívio com judeus, o narrador exprime com clareza a contradição que há no facto de nos mostrarmos muito receptivos ao outro e de, ao mesmo tempo, nos orgulharmos desta abertura, como se os "outros" fossem espécies raras que temos a delicadeza de apreciar.

Porém, o que sobressai na obra de Alessandro Piperno é a intenção de escrever uma história que se integre numa linhagem especificamente literária, ficcional. Na verdade, o modo como as personagens são "construídas" mostra bem essa intenção: a sua caracterização inclui comparações com outros "seres de papel" (R. Barthes) - como nesta passagem: «Talvez sob a influência da minha condição de leitor, era-me fácil considerar Karen como a encarnação viva de muitas rarefeitas heroínas fim de século» (p. 150). Há também, embora menos frequentes, comparações com personagens e figuras emblemáticas da história do cinema. Mas a intenção de Piperno não serve de bom argumento para a tese de que a vida e a arte estão em "domínios" diferentes, para a ideia de que a "arte" é uma espécie de "reino" com regras muito próprias. O que a história de Piperno parece sugerir é que a ficção é o método mais exacto de que dispomos para compreender a vida, para clarificá-la (mais do que a psicanálise, o meio a que recorre uma das personagens).

Alessandro Piperno. Com as piores intenções. Lisboa: Editorial Presença, 2008. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.