«[...] todos os grandes temas existenciais que Heidegger analisa em Ser e Tempo, julgando-os abandonados por toda a filosofia europeia anterior, foram desvendados, mostrados, iluminados por quatro séculos de romance (quatro séculos de reincarnação europeia do romance). Um por um, o romance descobriu à sua própria maneira, pela sua própria lógica, os diferentes aspectos da existência: com os contemporâneos de Cervantes interroga-se sobre o que é a aventura; com Samuel Richardson, começa a examinar "o que se passa no interior", a desnudar a vida secreta dos sentimentos; com Balzac descobre o enraizamento do homem na História; com Flaubert explora a terra até então incógnita do quotidiano; com Tolstoi debruça-se sobre a intervenção do irracional nas decisões e no comportamento humanos. Sonda o tempo: o fugidio momento passado com Marcel Proust; o fugidio momento presente com James Joyce. Interroga, com Thomas Mann, o papel dos mitos que, vindos do fundo dos tempos, guiam os nossos passos. Et caetera, et caetera.»
Milan Kundera, L'Art du roman, 1987 (trad. port. A Arte do Romance, Dom Quixote, 1988)