sexta-feira, abril 24, 2009

Tempo de meditação


Robert Berény [Girl reading (Anna)] 1846/48

(Esta também veio d' O Silêncio dos Livros)

Conhecimento e "humildade": pequena nota sobre Descartes

Na narrativa que conta a história da filosofia ocidental, o Discurso do Método, o texto de Descartes que serve de prefácio ao volume que reúne os ensaios Geometria, Dióptrica e Meteoros (1637), é tido como a obra que dá início à filosofia moderna. Quando conheci o texto, houve um aspecto que chamou a minha atenção: o facto de a premissa essencial da nova filosofia do método, a filosofia que se assume como 'mais certa do que a escolástica', não ser a 'evidência' (a primeira regra que leva a aceitar o argumento do cogito) mas antes uma espécie de humildade, que é convertida num atributo de toda a 'coisa que pensa'. Dito de outro modo, as teses cartesianas dependem de uma concepção da "natureza humana" alicerçada na ideia de imperfeição. Para Descartes, a certeza acerca das nossas ideias depende de um elemento estranho à nossa natureza: é o divino em nós que, em virtude da sua perfeição absoluta, certifica a 'evidência'. É uma argumentação curiosa esta: da nossa imperfeição, da imperfeição da nossa razão, deduz-se uma instância perfeita que acaba por validar os fundamentos do conhecimento.

Os Japoneses e os gatos (ou algumas razões para gostar - ou não gostar - de ser um gato...)



quarta-feira, abril 22, 2009

'As palavras e as coisas'


Dr. Cukrowicz - «Insane» is such a meaningless word.

segunda-feira, abril 20, 2009

Sobre "O Delfim". A escrita, a caça e a herança neo-realista



Eduardo Prado Coelho sobre O Delfim e a escrita de José Cardoso Pires:

«Maria Lúcia Lepecki termina o seu estudo exaustivo da obra de Cardoso Pires com estas palavras inequívocas: "Marxista e revolucionária, é esta uma escrita desmitificadora e confiante."
Pela minha parte, e cedendo à tentação do paradoxo, tenho vontade de reformular as palavras de Lepecki em qualquer coisa deste tipo: marxista e revolucionária, é esta uma escrita mitificadora e céptica. Penso que, de certa maneira, ambos temos razão. Mas avanço com as minhas próprias razões neste terreno difícil.
Em primeiro lugar, o realismo de Cardoso Pires é continuamente ladeado pelo par naturalismo/expressionismo. [...] Que significa isto? Que o universo de O Delfim se caracteriza pelo pendor naturalista de criar mundos que são como que anteriores à diferenciação nítida entre os homens e os animais. [...] Por isso mesmo, deste pulsar naturalista, ofegante de torpezas e repressões, apenas se transita para uma espécie de surrealidade alucinada, como na cena da conjura dos lenços vermelhos.
O único desenlace possível para uma tal ferocidade original é o da predação, e não é certamente por acaso que a caça nos surge como o horizonte permanente das narrativas de Cardoso Pires. Uns caçam por necessidade (o velho de O Anjo Ancorado caça um perdigoto para o vender), outros pelo prazer do conforto (João, no mesmo texto, pratica a caça submarina). Mas, para todos, a caça funciona como denominador simbólico. Incluindo o escritor, para quem escrever é ir no encalço de uma presa, ou o leitor, que vai sempre em busca do sentido inacessível.
O importante é sublinhar (e este é um segundo ponto de transformação da herança neo-realista) que a caça oscila entre uma dimensão devoradora e uma dimensão lúdica. Se a primeira ainda tem cabimento para quem veja os cenários do capitalismo em que os homens são os lobos dos próprios homens, a segunda já se enquadra mal na tradição produtiva em que o prazer do jogo (ou o valor do erotismo) nos afasta dos programas utilitários de produção ou reprodução. É este um ponto essencial, porque todo o universo literário de Cardoso Pires é dominado pela ideia de jogo. Escrever é entrar no jogo, fingindo um saber que é apenas um modo elegante e obstinado de lidar com o que se não sabe: o confronto com a morte ou o acaso, ou qualquer outra figura da crueldade do destino.»
Eduardo Prado Coelho. "O Círculo dos Círculos", pp. 16-18, itálicos do texto
(este texto vem na edição de bolso Booket/Dom Quixote, 2008).

sábado, abril 18, 2009

Música para o fim-de-semana

Uma certa visão da natureza humana


«NATURE (the art whereby God hath made and governs the world) is by the art of man, as in many other things, so in this also imitated, that it can make an artificial animal. For seeing life is but a motion of limbs, the beginning whereof is in some principal part within, why may we not say that all automata (engines that move themselves by springs and wheels as doth a watch) have an artificial life? For what is the heart, but a spring; and the nerves, but so many strings; and the joints, but so many wheels, giving motion to the whole body, such as was intended by the Artificer? Art goes yet further, imitating that rational and most excellent work of Nature, man. For by art is created that great LEVIATHAN called a COMMONWEALTH, or STATE (in Latin, CIVITAS), which is but an artificial man, though of greater stature and strength than the natural, for whose protection and defence it was intended; and in which the sovereignty is an artificial soul, as giving life and motion to the whole body; the magistrates and other officers of judicature and execution, artificial joints; reward and punishment (by which fastened to the seat of the sovereignty, every joint and member is moved to perform his duty) are the nerves, that do the same in the body natural; the wealth and riches of all the particular members are the strength; salus populi (the people's safety) its business; counsellors, by whom all things needful for it to know are suggested unto it, are the memory; equity and laws, an artificial reason and will; concord, health; sedition, sickness; and civil war, death. Lastly, the pacts and covenants, by which the parts of this body politic were at first made, set together, and united, resemble that fiat, or the Let us make man, pronounced by God in the Creation.»
Thomas Hobbes. The Leviathan, introdução.

A obra pode ser lida
aqui.

quarta-feira, abril 15, 2009

"Cantigas da Inocência e da Experiência"



Do livro Cantigas da Inocência e da Experiência, de William Blake (Antígona, 2007. Tradução, introdução e notas de Manuel Portela)

sábado, abril 11, 2009

"A Mancha Humana"


O que dizer sobre A Mancha Humana, romance que Philip Roth publicou em 2000 e que completa a Trilogia Americana? Talvez que o desejo surge como o elemento que impede uma interpretação assente numa hipótese historicista sobre a condição humana; o desejo é o elemento constante desde os Gregos, com os seus deuses demasiado humanos, até 1998, o ano em que a América ficou a pensar num presidente e na sua estagiária. E talvez que, como é defendido ao longo deste seminário, o romance de Philip Roth apresenta uma noção de identidade pessoal como performance, algo que se pode inferir da educação de Coleman Silk, uma educação pensada a partir de Shakespeare, da língua de Shakespeare. Em larga medida, a vida de Coleman, enquanto encenação do destino de um branco, é (ou pretende ser) um argumento contra a biologia, ou contra uma instância anterior à acção, a tudo o que se faz.
Ligada à performance está a ideia do segredo, ou o facto de não sabermos tudo sobre uma pessoa. Na verdade, sugere-se em várias passagens do romance de Roth que o traço distintivo da "pessoa" é a possibilidade de fuga a qualquer definição, a qualquer conjectura fácil. A dimensão pedagógica da obra de Roth consiste justamente em descrever como um "erro" a tendência para falar das pessoas como se fossem pequenos mundos que conhecemos plenamente.

Música para o fim-de-semana

«As lágrimas caíam todas espontaneamente, por muito que pudesse surpreendê-lo a pouca resistência que tinha a Helen O'Connell e a Bob Eberly cantando alternadamente os versos de "Green Eyes", por muito que pudesse maravilhá-lo o condão de Jimmy e Tommy Dorsey para o transformarem no género de velho vulnerável que nunca julgara poder vir a ser. Mas deixem alguém nascido em 1926, dizia, tentar ficar sozinho em casa num sábado à noite, em 1998, e ouvir Dick Haymes cantar "Those Little White Lies". Deixem-nos fazer isso e deixem-nos dizer-me, depois, se não compreendem finalmente a famosa doutrina da catarse desencadeada pela tragédia.»
Philip Roth. A Mancha Humana.

quinta-feira, abril 09, 2009

Planos

- Tens de pensar na vida. Tens trinta anos. A partir dos trinta e cinco, a gravidez passa a ser de risco. Tens de fazer planos para a tua vida.
- Planos? Planos de cinco anos como o Estaline?

Do filme Happy-Go-Lucky.

segunda-feira, abril 06, 2009

"A Noite da Iguana e outras histórias"

A Noite da Iguana e outras histórias, livro que a Assírio & Alvim publicou recentemente (2009, tradução de José Agostinho Baptista), reúne nove contos de Tennessee Williams. Entre eles está, portanto, a 'short story' sobre a experiência de Miss Edith Jelkes no hotel mexicano Costa Verde, um texto de 1948 que T. Williams iria transformar depois numa peça. A peça, por sua vez, serviu de ponto de partida para o filme realizado por John Huston:



Nas primeiras linhas do conto "Retrato de uma rapariga em vidro", diz-se: «Quanto à minha irmã, ela era ainda mais difícil de definir do que eu» (p. 61). As histórias de Williams são, sobretudo, histórias de pessoas difíceis de definir, pessoas cujas vidas constituem um desafio a tudo o que se apresenta como expectável, ou como o caminho para uma "felicidade razoável". Em certa medida, todas parecem partilhar de uma «secreta sabedoria» (p. 64) sobre o carácter imperfeito da criação («Se Ele, o Criador, não ordenara todas as coisas da melhor maneira [...]», p. 21, conto "A Maldição") e a crueldade a que estão submetidas todas as criaturas («Como é terrível estar à mercê de gente sem piedade!», p. 89, conto "A Noite da Iguana").

Na história da irmã que vive 'num mundo de vidro e de música', o seu retrato - retrato construído por um irmão que escreve poemas - consiste na negação da ideia que o vidro pode, à partida, sugerir, ou seja, a transparência, ou a possibilidade de um sentido sem interpretação. A rapariga retratada, tendo a capacidade de dizer coisas que não primam pela evidência («Nunca descobri o que queria dizer com aquilo», p. 73), é alguém que vive com certos livros e a quem não ocorre que «um livro é uma coisa que se lê e, uma vez acabado, se põe de parte» (p. 65). Em certa medida, este é o retrato de uma pessoa que não encontra sentido na diferença que Flora (conto "A Coisa Importante") estabelece entre a 'realidade ideal' da escrita e a vida (p. 119), ou na diferença entre verdade e poesia (p. 113, conto "A Semelhança entre um estojo de violino e um caixão") e que, por essa razão, admite que as estrelas possam ter cinco pontas. Já no caso de Billy e Cora (conto "Sociedade a dois"), a coerência dos seus actos releva de uma 'espécie de anarquia moral', que rejeita a sociedade sem espaço para a liberdade individual: «Era uma espécie de anarquia moral o que, indubitavelmente, os mantinha juntos, uma verdadeira aversão que comungavam contra tudo o que fosse restritivo e falso na sociedade em que viviam e contra cuja natureza lutavam sem desfalecimentos» (p. 153). Como eles, a irmã do poeta rejeita uma existência ordenada de certo modo, mas (devido a uma maior fragilidade, que o vidro também sugere) exprime essa rejeição vivendo «à espera que a espécie de brilho de pedra preciosa de cada peça arrancasse do seu espírito a dolorosa realidade» (p. 64).

Nas histórias deste pequeno livro (160 páginas), ganha destaque o dom de T. Williams para escrever com uma clareza, um sentido visual e uma fluidez narrativa que não sacrificam o densidade psicológica das personagens. Talvez isto explique também por que razão a sua obra se prestou a tantas adaptações para cinema.

domingo, abril 05, 2009

Lucio, o 'homenzinho', e a gata Nitchevo

«O pressentimento de que não iria conservar o emprego por muito mais tempo tornou-se uma obsessão: uma ideia que se agarrava ao cérebro e não o abandonava em momento algum. Apenas à noite, com Nitchevo, a gata, conseguia afastar, em parte, esses negros pensamentos. A presença do animal como que negava todos os desígnios da má sorte. É claro que Nitchevo não tinha nada a ver com a roda da fortuna; para ela tudo corria de acordo com uma ordem natural e determinada e não havia razão para apreensões. Todos os seus gestos eram lentos, calmos, revestidos de elegância e graça. Os olhos de âmbar detinham-se em cada objecto com olímpica serenidade. Nem em relação à comida se precipitava. Lucio trazia-lhe todas as noites leite para a ceia e para o pequeno-almoço; Nitchevo esperava tranquilamente, sentada sobre o traseiro, enquanto ele despejava o leite num pires velho emprestado pela proprietária e que colocava no chão, ao pé da cama. Depois estendia-se sobre os lençóis, observando e esperando que Nitchevo se dirigisse lentamente para o pires azul-claro. Levantava os olhos para ele uma vez - muito devagar - esses olhos amarelados e fixos; só depois começava a comer, baixando delicadamente o pequeno queixo para a borda do pires, avançando a ponta vermelha da língua; então, o quarto enchia-se da doce e leve música da sua boca a lamber. Lucio observava-a e ao fazê-lo era como se se esquecesse de tudo. Os apertados nós da angústia desatavam-se, libertando-o. Não sentia no fundo do corpo aquele sentimento opressivo, aquela tensão que fazia o coração bater tão depressa. Começava a ter sono enquanto a olhava - um sono que era quase êxtase. Nitchevo adquiria uma forma cada vez maior. O quarto perdia contornos, diluía-se. Parecia-lhe agora que eram do mesmo tamanho: sim, ele era um gato como Nitchevo - estavam deitados lado a lado no chão, lambendo leite no confortável e aconchegado calor de um quarto trancado, longe de fábricas e capatazes, longe de louras proprietárias de peito assombroso.
Nitchevo levava imenso tempo a lamber o leite. Lucio adormecia muitas vezes antes de ela acabar. Acordava mais tarde, sentindo o seu pequeno calor junto a si - com a mão dormente acariciava-a e sentia a levíssima vibração das vértebras enquanto ronronava. Estava a ficar gorda. Os flancos sobressaíam. É evidente que não houve nenhuma declaração de amor entre os dois, mas sabiam que havia um contrato entre eles, um contrato que duraria até ao fim da vida.
[...]
Nitchevo não precisava que lhe dissessem que Deus fixara residência nesta cidade. Já por duas vezes descobrira a sua existência: primeiro na pessoa do russo, e agora na de Lucio. É duvidoso que os distinguisse verdadeiramente. Ambos representavam a mesma infinita misericórdia. Tornavam-lhe a vida agradável e segura. Tiraram-na da rua e deram-lhe uma casa. Uma casa quente, e almofadas e tapetes macios. Vivia contente de dia e de noite, ao contrário de Lucio, com a sua alegria meramente nocturna. A dela era uma alegria perfeita, jamais interrompida. (Se Ele, o Criador, não ordenara todas as coisas da melhor maneira, a verdade é que concedera um inestimável dom aos animais, ao privá-los da inquietante faculdade de prever o futuro).»

Tennessee Williams. "A Maldição". A Noite da Iguana e Outras Histórias. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, pp. 16-17, 21. Tradução de José Agostinho Baptista.

sábado, abril 04, 2009

Música para o fim-de-semana, e um diálogo

1) A música



(a qualidade desta gravação não é a melhor...)


2) O diálogo

Afinal, qual é a essência da vida? A vida é trágica ou cómica? O que se segue é o final do filme Melinda and Melinda.

[quatro pessoas conversam]

- Quem conta uma história acrescenta sempre algo. Ouvimos a história, escolhemos pormenores. Assim, moldamos a história e tornamo-la uma tragédia - como a queda de uma mulher apaixonada. E é assim que tu vês a vida. Enquanto tu pegas nos pormenores e coloca-los numa comédia romântica. Óptimo. É a tua visão da vida. Mas é óbvio que não há uma essência definitiva que se possa eleger.

- Bom, existem momentos de humor. Eu gosto de explorá-los. Mas eles existem dentro de um contexto de tragédia.

- Vocês vão todos ao funeral do Phil Dorfman na semana que vem? Ele teve um ataque cardíaco. Tinha acabado de receber o electrocardiograma, que estava bem.

- Eu detesto funerais.

- Eu também. Rio-me sempre nos momentos errados.

- Aí está. Rimo-nos porque isso disfarça o nosso verdadeiro terror à mortalidade.

- Bom, eu não queria que começássemos a falar sobre funerais.

- Como é que o mundo pode ter alguma piada se nem podemos confiar num electrocardiograma?

- Eu quero ser cremado.

- Agora ou depois de morreres?

- Vamos mudar de assunto. Viemos até aqui para nos divertirmos.

- Vamos brindar aos bons momentos. Trágicos ou cómicos, a coisa mais importante a fazer é gozarmos a vida enquanto podemos porque só passamos por cá uma vez, e quando acabar, acabou. E, com um electrocardigrama ou não, quando menos esperamos, tudo pode acabar assim. [estala os dedos e acaba o filme]

sexta-feira, abril 03, 2009

Felicidade felina (continuação)

Para ler esta maravilha, é só ir aqui.

The Naming of Cats is a difficult matter,
It isn't just one of your holiday games;
You may think at first I'm as mad as a hatter
When I tell you, a cat must have THREE DIFFERENT NAMES.
First of all, there's the name that the family use daily,
Such as Peter, Augustus, Alonzo or James,
Such as Victor or Jonathan, or George or Bill Bailey -
All of them sensible everyday names.
There are fancier names if you think they sound sweeter,
Some for the gentlemen, some for the dames:
Such as Plato, Admetus, Electra, Demeter -
But all of them sensible everyday names.
But I tell you, a cat needs a name that's particular,
A name that's peculiar, and more dignified,
Else how can he keep up his tail perpendicular,
Or spread out his whiskers, or cherish his pride?

(...)

O link foi-me enviado pelo Manuel.

quarta-feira, abril 01, 2009

Felicidade felina

«Existem momentos em que fico horas a olhar para o meu gato. Com inveja, sempre com inveja. Só Deus sabe o que existe na cabeça de um felino. Mas acompanho as rotinas dele e sei, filosoficamente falando, que ele é feliz. (...).»
O texto de João Pereira Coutinho continua n'O Sítio.

(duas gatas felizes)