Aceita-se hoje a ideia (para a qual muito contribuíram os românticos quando definiram a singularidade da visão genial como critério de valor artístico) de que cabe à arte mostrar aquilo que as pessoas, na sua experiência quotidiana, não conseguem ver: a beleza, a complexidade das coisas a que nos habituámos, a fragilidade de certos valores e ideias, etc.. A julgar pelo filme mais recente de João Canijo, o Mal Nascida, parece existir, no caso de algum cinema português, a intenção de mostrar um Portugal que os Portugueses não conseguem ver devido a uma certa educação, a uma certa história. A mal nascida é aquela cuja vida constitui a perfeita antítese do sentido etimológico do seu nome: Lúcia. A vida de Lúcia nada tem de luminoso; a sua única alegria, diz a dada altura, é tratar da casa de Jusmino, o homem que ela, como mulher, não pode amar. Lúcia é, na verdade, uma criança que só se transforma em mulher entregando-se a uma relação incestuosa e matando a mãe; a sua condição trágica resulta, como no teatro grego, dos laços de sangue.
Contudo, já em cima sugeri, o filme de Canijo não consiste apenas na adaptação moderna de um mito grego; trata-se, com efeito, de uma adaptação a partir da qual é possível também tentar compreender o que é 'ser português' e perceber, deitando por terra uma certa ideia luminosa que a mitologia da saudade ajudou a tecer, quais os 'labirintos' desse 'ser português' (para utilizar a expressão que Eduardo Lourenço tornou célebre num conjunto de ensaios não menos célebre: O Labirinto da Saudade). Neste sentido, os objectos que permitem caracterizar as personagens pertencem ao simbólico. No caso da mãe de Lúcia, as imagens de Nossa Senhora, de muitas cores e tamanhos, traduzem claramente a transformação do sagrado em kitsch, o que aliás condiz bem com a ética sui generis que Evaristo tão bem descreve com a expressão 'Ai a puta da caridade'. Pelo contrário, as roupas simples de Lúcia mostram que a sua verdade não se mostra por ostensão. Mas disto não deve inferir-se que o Mal Nascida faz o elogio da integridade de Lúcia. A vida de Lúcia perdeu-se porque o passado não ficou resolvido e, em certo sentido, ela é o exemplo de como a fixação numa verdade - ou 'cena' - primitiva transforma a vida em sobrevivência.