quarta-feira, novembro 19, 2008

A Estrada


Há textos literários que pretendem ser uma reflexão sobre o mal, a violência, a decadência - em última instância, uma reflexão que permita perceber quais os fundamentos de que dispomos para atribuir significado às palavras "humano" e "desumano". A Estrada (tit. orig. The Road, 2006), de Cormac McCarthy , é um desses textos. O ponto de partida é a viagem (metáfora antiquíssima...) de duas personagens, um pai e um filho, em luta contra um espaço devastado, um espaço em que o cinzento domina e o único branco vem do céu, literalmente: em forma de neve. A devastação apocalíptica é «a fragilidade de todas as coisas enfim revelada» (p. 25) (uma das expressões de tom aforístico, quase sibilino, que constituem um traço da escrita de McCarthy); pássaros e árvores são coisas que existem «só nos livros» (p. 106). A viagem até ao Sul é uma viagem de sobrevivência e um imperativo, algo que tem de acontecer porque o pai e o filho são "os bons", as pessoas que não comem outras pessoas. Eles transportam, como Prometeu, o fogo.

A existir uma carga simbólica e alegórica no romance, esta é, pode dizer-se, a consequência de uma escrita (escrita irregular, em que as frases longas, sem dar azo a fôlego, alternam com frases curtas, algumas semelhantes a máximas) que deseja aproximar-se do mistério, daquilo que pode explicar o devir do mundo e dos homens - que pretende aproximar-se de um 'mapa do mundo no seu devir'. A possibilidade de ver na história um símbolo não anula a realidade das personagens porque o mistério está nelas: «Havia alturas em que ficava a ver o rapaz dormir e começava a soluçar descontroladamente, mas não era por causa da morte. [...] achava que era por causa da beleza ou da bondade» (p. 88).

Referência das páginas: C. McCarthy. A Estrada. Lisboa: Relógio d'Água, 2007. Tradução de Paulo Faria.