As costas das mãos, flácidas, um pouco indecentes, atormentavam-me,
causavam-me desconforto. Sentia mera repugnância ao olhar
para os meus dedos cadavéricos, detestava todo o meu corpo encovado
e causava-me arrepios arrastá-lo, senti-lo à minha volta.
Knut Hamsun, Fome
Paul Auster, num ensaio cujo título ("A Arte da Fome") remete para um conto de Franz Kafka ("O Artista da Fome"), destaca três ideias essenciais acerca do romance Fome (título original 'Snut'), de Knut Hamsun: é uma obra que não obedece aos requisitos do romance tradicional, na medida em que os acontecimentos têm lugar no mundo subjectivo do narrador; o narrador é, à semelhança da personagem central de Crime e Castigo, um 'mostro de arrogância intelectual'; apesar de não existir no romance uma referência explícita ao problema da escrita e da criação literária, ele tem subjacente uma concepção de arte.
Sobre ao primeiro ponto sublinhado por Auster, o romance exibe de facto a exploração, que Joyce elevaria a um outro nível, dos meandros da consciência, destacando-se os momentos em que o narrador reflecte, em monólogos vertiginosos que a fome suscita, sobre os limites da lucidez e da demência. Com efeito, a descrição do processo de escrita torna impossível ao leitor garantir que a loucura está ausente dos actos do escritor faminto, que deseja escrever no limite, i.e., quando a fome ameaça vencer o corpo (como Auster também nota, a noção de arte que está implícita nesta atitude é a de que a arte que não se distingue da vida, implicando um comprometimento real). E o mais curioso é o facto de o narrador nada fazer para impedir a aproximação daquele limite; a sua inteligência parece sucumbir a imperativos que relevam de uma moralidade muito distorcida, cheia de contradições.
É igualmente justa a observação de Auster sobre a arrogância do narrador de Fome, a lembrar a megalomania de um Raskolnikov. A arrogância manifesta-se sobretudo em gestos estúpidos, mediante os quais o narrador mente sobre a sua situação. É aliás notável a forma como Hamsun consegue escrever como se evitasse suscitar qualquer sentimento de compaixão. Do mesmo modo, trata o tema da fome sem recorrer a uma contextualização política, permitindo assim que o indivíduo se eleve acima da história.
Knut Hamsun, Fome. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2008. Tradução de Liliete Martins. Prefácio de Paul Auster ("A Arte da Fome"). Data da primeira publicação: 1890.