quarta-feira, dezembro 24, 2008

Naomi, ou a história de um pobre idiota


Ito Shinsui, O Início da Primavera, 1930

Em Naomi (tít. original Chijin No Ai), o belíssimo romance do escritor japonês Junichiro Tanizaki, o leitor encontra um conjunto não pequeno de referências a um período decisivo da história moderna do Japão, período marcado pela ocidentalização que se seguiu ao fim de um isolamento secular. Neste sentido, não incorremos em erro ao afirmar que Naomi mostra os efeitos de uma aculturação quase súbita que se reflectiu na arquitectura, na moda, nas relações afectivas e em «novas doutrinas e filosofias de toda a espécie» (p. 7), nem ao acrescentar que o romance não veicula uma perspectiva muito optimista acerca deste fenómeno, como se Tanizaki pretendesse sublinhar a diferença entre abertura e descaracterização, ou mesmo mostrar a irracionalidade do fascínio por uma cultura quando este fascínio implica abdicar de tudo o que somos.
Na verdade, a reflexão sobre os efeitos da ocidentalização na cultura nipónica constrói-se a partir da descrição de aspectos do comportamento de Naomi, a japonesa que é o amor de Joji e o centro da narrativa. O romance de Tanizaki apresenta assim a história de um amor que começa como um «conto de fadas» e culmina na vitória da obsessão (de quem ama) e da perversidade lasciva (de quem é amado). Na fase idílica dos «contos de fadas», é particularmente belo o modo como é descrita a mistura de ternura e desejo que caracteriza a relação entre Joji e Naomi; veja-se, por exemplo, a passagem em que Joji, o narrador, “cita”, num estilo de que Nabokov se aproxima nos melhores momentos de Lolita, o diário onde começou a relatar o desenvolvimento de Naomi, como se esta fosse um bebé. Depois desta fase poética e ingénua, Naomi torna-se uma espécie de “Cleópatra” e Joji faz o papel de Marco António, ou seja, o papel do grande “idiota” que sucumbe aos encantos daquela que educou (sim, também é possível interpretar a obra de Tanizaki como a história de uma educação falhada...) para ser a mulher perfeita. E nós, leitores, reagimos em muitos momentos como a turma de Joji na aula de História: rimos.
Se nos permitirmos a referência a um texto fundador da cultura ocidental como é o Banquete, a noção de “amor” implícita no romance de Tanizaki cinge-se ao primeiro estádio do amor platónico: é a beleza do corpo de Naomi, a pele, os seios, a saliência das ancas, que imobilizam, desde o primeiro momento, a razão de Joji, transformando o seu afecto num sentimento que está no limiar da demência. E porque a literatura é, em última análise, a natureza humana mostrada em exemplos, o romance de Tanizaki desafia assim o tipo de leitura que converte o texto literário num objecto analisável unicamente em termos histórico-culturais.

Referência das páginas: Naomi. Lisboa: Relógio d'Água, 2007. Tradução e notas de Margarida Piriquito. A obra de Tanizaki começou a ser publicada em folhetins em 1924..