segunda-feira, abril 20, 2009

Sobre "O Delfim". A escrita, a caça e a herança neo-realista



Eduardo Prado Coelho sobre O Delfim e a escrita de José Cardoso Pires:

«Maria Lúcia Lepecki termina o seu estudo exaustivo da obra de Cardoso Pires com estas palavras inequívocas: "Marxista e revolucionária, é esta uma escrita desmitificadora e confiante."
Pela minha parte, e cedendo à tentação do paradoxo, tenho vontade de reformular as palavras de Lepecki em qualquer coisa deste tipo: marxista e revolucionária, é esta uma escrita mitificadora e céptica. Penso que, de certa maneira, ambos temos razão. Mas avanço com as minhas próprias razões neste terreno difícil.
Em primeiro lugar, o realismo de Cardoso Pires é continuamente ladeado pelo par naturalismo/expressionismo. [...] Que significa isto? Que o universo de O Delfim se caracteriza pelo pendor naturalista de criar mundos que são como que anteriores à diferenciação nítida entre os homens e os animais. [...] Por isso mesmo, deste pulsar naturalista, ofegante de torpezas e repressões, apenas se transita para uma espécie de surrealidade alucinada, como na cena da conjura dos lenços vermelhos.
O único desenlace possível para uma tal ferocidade original é o da predação, e não é certamente por acaso que a caça nos surge como o horizonte permanente das narrativas de Cardoso Pires. Uns caçam por necessidade (o velho de O Anjo Ancorado caça um perdigoto para o vender), outros pelo prazer do conforto (João, no mesmo texto, pratica a caça submarina). Mas, para todos, a caça funciona como denominador simbólico. Incluindo o escritor, para quem escrever é ir no encalço de uma presa, ou o leitor, que vai sempre em busca do sentido inacessível.
O importante é sublinhar (e este é um segundo ponto de transformação da herança neo-realista) que a caça oscila entre uma dimensão devoradora e uma dimensão lúdica. Se a primeira ainda tem cabimento para quem veja os cenários do capitalismo em que os homens são os lobos dos próprios homens, a segunda já se enquadra mal na tradição produtiva em que o prazer do jogo (ou o valor do erotismo) nos afasta dos programas utilitários de produção ou reprodução. É este um ponto essencial, porque todo o universo literário de Cardoso Pires é dominado pela ideia de jogo. Escrever é entrar no jogo, fingindo um saber que é apenas um modo elegante e obstinado de lidar com o que se não sabe: o confronto com a morte ou o acaso, ou qualquer outra figura da crueldade do destino.»
Eduardo Prado Coelho. "O Círculo dos Círculos", pp. 16-18, itálicos do texto
(este texto vem na edição de bolso Booket/Dom Quixote, 2008).