domingo, maio 17, 2009

Fernando Pessoa sobre 'um poeta com desvantagens psíquicas'

(ano de 1915)
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A William Bentley

«[...] se o senhor quiser passar os olhos por toda a literatura portuguesa do passado, encontrará um factor constante, que é a estranha falta de formas elevadas de intelecto nos seus criadores. Tome como exemplo Camões. É um grande poeta épico e um razoavelmente bom poeta lírico. Mas submeta as suas obras a uma análise imparcial e tente encontrar nele um alto grau de inteligência genuína. Não será bem sucedido. Ele é altamente emotivo; tem entusiasmo e sensibilidade. Mas é assinalavelmente desprovido de todas as qualidades puramente intelectuais com as quais a poesia mais elevada - e a literatura mais elevada - é construída. Não tem em si a profundidade; não tem uma profunda intuição metafísica (tal como poderia encontrar às dúzias numa página de Shakespeare). Não tem fantasia. Não tem imaginação, propriamente dita; embora a sua emoção suba por vezes tão alto que o leva a imaginar a imaginar a despeito da sua incapacidade. E mesmo aí, a sua incapacidade fundamental revela-se nos pormenores. Repare no Adamastor, que foi o melhor que ele fez. Note a extraordinária incapacidade para conceber os grandes pormenores, veja como ele cai no superficial e no mesquinho, mesmo no centro da sua inspiração. Ele está em terreno mais seguro em episódios como os de Inês de Castro, pois aí está mais dependente da pura emoção, sem necessidade de imaginação. Para encurtar razões, Camões, que é o mais imaginativo dos poetas portugueses antes de 1860, é, para ser brusco e franco, tão pouco inteligente como pouco imaginativo. O milagre é que, com estas desvantagens psíquicas, ele foi capaz de produzir um poema relativamente bom.»

Fernando Pessoa. Correspondência. 1905-1922. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, pp. 202-293. Edição de Manuela Parreira da Silva.