Áreas disciplinares como a "narratologia" («a ciência que procura formular a teoria dos textos narrativos na sua narratividade»; cf. M. Bal. Narratologie, 1977) talvez não existissem se os estudos literários partissem da tese de que usamos as mesmas palavras e as mesmas proposições para nos referirmos a personagens e a pessoas - i.e. para procedermos à sua caracterização e descrevermos as suas vidas.
Um dos traços mais interessantes da história da americana Isabel Archer prende-se com o facto de H. James explorar a ideia de que as melhores descrições de cada personagem, das suas acções e do seu destino são fornecidas por outros livros, por outros textos literários. Na verdade, é possível ler o romance como a história de uma mudança na forma de entender a relação entre os livros (a arte) e a vida. Note-se: se Isabel era muito dada a leituras antes da sua chegada a Inglaterra, procurando desse modo saciar a curiosidade e aprender algo sobre a vida (é-nos dito que ela procurava perceber até que ponto as 'descrições livrescas' condiziam com a realidade que encontrara no velho continente), no final da história (quando sabe que o seu projecto de vida falhou) o que caracteriza o seu estado de espírito ao regressar à biblioteca de Gardencourt é, pelo contrário, a 'pouquíssima atracção para os romances'. Há, a meu ver, dois modos possíveis de interpretar esta mudança: 1) Isabel percebe que os livros nada têm a ensinar sobre a vida (o mesmo é dizer que não vale a pena tentar perceber se a vida a e a literatura condizem); 2) Isabel percebe com dor a proximidade entre os livros e a vida (percebe, por exemplo, que 'comédia' e 'tragédia' não são "apenas" categorias literárias, ou, como nós é dito no cap. XLIX, que o epíteto 'perversa' se aplica tanto a personagens histórias como a pessoas). Esta segunda interpretação parece-me a mais justa por várias razões, mas sobretudo porque condiz com a reflexão sobre a arte do romance que acompanha todo o texto (ou - o que é o mesmo - a vida de Isabel). Não é por acaso que Ralph Touchett deixa a sua biblioteca a Miss Stackpole, a melhor amiga de Isabel que viera até à Europa em busca de matéria-prima para os seus artigos, ou seja, procurando, como um romancista, conhecer de perto a vida das pessoas. E é também nas considerações de Ralph que a auto-reflexividade do romance se exibe melhor: Ralph sobrevive até ao final do romance por curiosidade. Sobrevive porque quer saber o que Isabel Archer fará com a sua vida; quer, em suma, apreciar o retrato.