quinta-feira, novembro 27, 2008

Literatura e sabedoria segundo Harold Bloom


Mas o Sublime nietzschiano, como o de Longino e o de Shelley,
baseia-se no abandono dos prazeres mais fáceis em vista da
experiência de outros mais difíceis. A poesia forte é difícil,
e é memorável em consequência de um prazer difícil,
sendo que um prazer suficientemente difícil é uma espécie de dor.
Hardol Bloom, Onde Está a Sabedoria?

Em cada obra de génio reconhecemos os nossos pensamentos
postos de lado; regressam a nós como uma certa majestade alheia.
Emerson, "Confiança em si", citado por H. Bloom

Onde está a sabedoria?, título editado recentemente pela Relógio d'Água, é a tradução de uma obra que Harold Bloom publicou em 2004 (título original: Where Shall Wisdom be Found?) e dedicou a Richard Rorty. Nas primeiras linhas, Bloom esclarece que o livro «surge de uma experiência pessoal, reflectindo a busca de uma sageza capaz de aliviar e esclarecer os traumas resultantes do envelhecimento, da recuperação de uma doença grave e da dor causada pela perda de amigos queridos» (p. 15). Com efeito, ao longo de três partes/capítulos, Bloom procura reflectir sobre a relação entre a leitura e a procura da sabedoria (ou "sageza", para manter a palavra que me lembro de ter lido pela primeira vez numa descrição de Maina Mendes, romance de Maria Velho da Costa). Dirigindo-se a 'leitores comuns' e tomando como ponto de partida a ideia de que «fiéis ou não, todos nós aprendemos a aspirar à sabedoria, seja onde for que possa estar» (p. 15), Bloom, que se autodefine como «judeu e gnóstico» (p. 236), nunca chegará a tomar como sinónimos "sabedoria" e "conforto". Neste sentido, uma paráfrase justa do seu pensamento será: 'aprendemos coisas com os autores sapienciais (eg. aprendemos a conhecer os nossos limites) mas essa aprendizagem não é uma forma de conforto'.

Na reflexão que desenvolve, Bloom parte da interpretação dos autores que, em seu entender, formularam um pensamento novo e contribuíram para uma redefinição do que somos como ocidentais, ocupando deste modo o panteão dos autores mais "influentes" (sim, Bloom retoma em vários momentos a tese que defendeu em A Angústia da Influência, de 1973, e que agora sintetiza tão bem na frase: «toda a literatura forte é uma espécie de roubo», p. 145). Entre eles, estão os autores do Livro de Job (que ensina uma forma de temor derivada da consciência de que «não possuímos uma linguagem apropriada para os nossos contactos com o divino», p. 24) e do Eclesiastes (que formula uma "sabedoria da aniquilação", mais tarde retomada por Shakespeare), Platão (que pretende rivalizar com Homero e ascender ao lugar de filósofo-educador da Grécia; para Bloom, a melhor interpretação da querela foi apresentada por Iris Murdoch no ensaio "The Fire and the Sun", incluído num volume que citei aqui), Homero (cuja obra, contendo uma concepção da vida como campo de batalha de forças arbitrárias, disputa com os primeiros escritos do Antigo Testamento 'a consciência das nações do Ocidente'), Shakespeare e Cervantes (autores sapienciais da literatura moderna, o primeiro realizando uma síntese única de ideias antigas e modernas, o segundo tratando a 'literatura' como tema), Montaigne (sábio universal e pragmático, que nos leva à aceitação de nós próprios e cujos ensaios são um tributo à lucidez humana), Francis Bacon (uma espécie de poeta da prosa com tendências prometaicas), Samuel Johnson (escritor dado aos aforismos que afirma a vida e nega quaisquer interpretações dogmáticas), Goethe (que legou o ideal da Bildung), Emerson (esse Goethe americano que formulou a doutrina da confiança em si e deixou muitos discípulos; Bloom refere Whitman e poderia ter acrescentado F. Pessoa), Nietzsche ('poeta falhado' defensor de um esteticismo extremo e que percebeu as virtudes cognitivas da poesia), Freud (segundo Bloom, nunca estamos livres de Freud mas Freud, por seu turno, também não conseguiu libertar-se do pensamento judaico segundo o qual tudo é passado e tudo é semanticamente sobredeterminado) e Proust (o romancista que, como nenhum outro, transformou o ciúme em metáfora do "combate estético pela imortalidade"). Na última parte (Sabedoria Cristã), Bloom elabora uma caracterização do pensamento gnóstico (partindo do comentário do Evangelho apócrifo de S. Tomé) e sublinha a importância das reflexões agostinianas sobre o valor da leitura, i.e., sobre aquilo que podemos esperar da relação com os textos.

O texto de Bloom, note-se, é suportado pela possibilidade de estabelecer uma diferença entre autores sapienciais e filósofos. Ao primeiro grupo pertencem escritores como Platão e Shakespeare; no segundo, Bloom inclui figuras da história intelectual do ocidente como Hume ou Wittgenstein. Se a diferença supõe a influência como ideia central, é sempre possível argumentar sobre o carácter influente, ou seja, discutir sobre o cânone. E Bloom é, de resto, um crítico que não hesita em "polemizar" quando se trata de defender os clássicos e o cânone da literatura ocidental. Em Onde está a sabedoria? não faltam as invectivas contra as 'enxurradas' de literatura light (assim como as referências muito pouco simpáticas à administração Bush).


Referência das páginas: Harold Bloom. Onde está a sabedoria?, Lisboa: Relógio d'Água, 2008. Tradução de Miguel Serras Pereira.