quinta-feira, dezembro 04, 2008

A felicidade não tem história. 'A Viagem do Elefante'

Diz-se, depois de que primeiro o tivesse dito tolstoi,
que as famílias felizes não têm história.
Também os elefantes felizes não parece que a tenham.
José Saramago, A Viagem do Elefante

Na passagem que abre este post, Saramago, fazendo alusão às primeiras palavras do romance Anna Karénina, apresenta uma definição exacta do seu livro mais recente: este livro é a história de um elefante infeliz, porque só os (elefantes) infelizes têm uma história (a Poética de Aristóteles diz, sobre as pessoas, uma coisa parecida por outras palavras...). Classificar o livro como "romance" é ir de encontro à classificação do autor, que, no programa Pessoal...e Transmissível e noutros lugares, defendeu antes a etiqueta "conto longo" (José Saramago parece aliás dar-se mal com certas teorizações sobre o fenómeno literário. Em tempos, afirmou que a distinção entre narrador e autor carecia de fundamento. Segundo relatos de quem estava presente - em Coimbra, creio -, alguns professores de Literatura e de Teoria da Literatura sentiram-se incomodados).

Taxinomias à parte, a crítica tem vindo a descrever o livro como um dos melhores de Saramago desde a atribuição do Nobel (para alguns, a leitura levou à 'reconciliação' com o autor de Memorial do Convento; para outros, a publicação de A Viagem do Elefante é a cereja em cima do bolo, sendo "o bolo" a série de actividades na quais o escritor dá provas de grande vitalidade). A meu ver, há de facto uma diferença, algo de novo, nesta obra de Saramago, mesmo em relação ao romance de 1982. Não diria, como também já se disse, que a novidade se prende com o facto de a narrativa deixar de estar subordinada a "intenções alegorizantes", que transformam a interpretação numa espécie de jogo de adivinhação. Parece-me antes que Saramago, que parece ter lido/ouvido a definição de «romancista» dada por Miguel Esteves Cardoso no n.º 75 da Ler (i.e., o romancista é aquele que conta histórias), escreve a história da viagem de Salomão com uma concepção diferente da "interpretação" e do acto de "ler", concepção que em dados momentos se torna explícita (no n.º 994 do JL, afirma: «As interpretações que possa suscitar são evidentemente livres [...]»).

Há um momento da história em que um padre é chamado a exorcizar, por via das dúvidas, o elefante que D. João III ofereceu a Maximiliano da Áustria. Antes da acção purificadora, há uma discussão sobre a coerência de Jesus (que, sem justificação, matou os porcos onde estavam alojados seres diabólicos, os Demónios que também inspiraram Dostoiévski) que leva o cura a insurgir-se contra um homem que fala dos escritos sagrados sem "saber ler": «E tu quem és para dizeres que jesus não pensou bem, Está escrito, padre, Mas tu não sabes ler, Não sei ler, mas sei ouvir, Há alguma bíblia em tua casa, Não, padre, só os evangelhos, faziam parte de uma bíblia, mas alguém os arrancou de lá, E quem os lê, A minha filha mais velha, é verdade que ainda não consegue ler de corrido, mas, graças às vezes que já leu o mesmo, vamos percebendo-a cada vez melhor» (p. 81). O interessante é que o aviso dado pelo padre, a quem cabe apontar o caminho/a leitura («lembra-te de que quem se mete por atalhos, nunca sai de sobressaltos»), parece descrever a noção do que é compreender ou interpretar o mundo que a narração das várias "peripécias" da viagem vai sugerir.

Como um membro da caravana a quem coube a tarefa de transformar a história (quase épica) de Salomão em Literatura, o narrador/autor acompanha o que acontece, mas, porque está especialmente atento ao funcionamento das palavras (cf. p. 84, p. 155), não dá pistas conclusivas que permitam, por exemplo, asseverar que aquele elefante representa uma pessoa (e que o romance é uma descrição fatalista da existência, um pouco à Ricardo Reis). Podemos falar do romance deste modo, e considerar que a viagem é, como sempre, metáfora de um caminho que é o da própria vida, mas não é Saramago que o determina. Como os humanos, Salomão está sujeito à lei da vida, ou seja, à lei que introduz uma curta distância entre o triunfo e o olvido, mas não deixa de ser um elefante cujos dejectos ofendem o olfacto delicado do arquiduque. De certo modo, é como se a narrativa, porque é feita de palavras (tudo o que temos), fosse apenas o início de uma conversação (p. 84), uma conversação sobre o sentido, algo que, como a própria literatura, talvez se confunda com a "eternidade".

(Referência das páginas: edição da Caminho)