terça-feira, dezembro 09, 2008

Homens e vermes. A Febre, de Le Clézio


Por fim, com frenesim, todo o corpo transformado em
máquina de cavar, insecto debatendo-se, torcendo-se
no meio do terrapleno, furando buracos por toda a parte,
com os braços, as pernas, os ombros, as ancas, a cabeça mesmo.
"Martin"

...nunca, não, nunca se saberá verdadeiramente até
que ponto o homem não passa dum vermezinho.
"Um dia de velhice"

"A febre", "O dia em que Beaumont travou conhecimento com a sua dor", "Parece-me que o barco se dirige para a ilha", "Atrás", "O homem que anda", "Martin", "O mundo está vivo", "Então poderei encontrar a paz e o sono" e "Um dia de velhice" fazem parte de uma obra que Jean-Marie Gustave Le Clézio, distinguido com o Prémio Nobel da Literatura 2008, publicou em 1965 (tit. orig. La Fièvre) e que a Ulisseia editou no mês passado, com tradução de Liberto Cruz. Se o modo clássico de narrar se define por um princípio de coerência a que por vezes se chama 'aristotélico', princípio segundo o qual as histórias bem contadas têm princípio, meio e fim, as 'histórias de loucura' reunidas em A Febre são, exactamente, narrativas que negam a noção clássica de bem contar. Este traço parece, no entanto, decorrer de aspectos da 'vida imitada', e não tanto, ou apenas secundariamente, de uma opção estética (do mesmo modo, é improvável uma apreciação meramente estética de "experiências" como o nouveau roman; nestas experiências literárias, associadas a um período em que a palavra "Deus" foi banida do vocabulário de certa filosofia, não deixa de estar em causa, quase freudianamente falando, um certo mal-estar).

Com efeito, quase todas as personagens das histórias de A Febre se caracterizam por uma vivência em que se perdeu a correlação entre sentido e fim. Paoli, na história "O homem que anda", caminha sem sentido, caminha por caminhar («Obliquou então para a direita, e começou a atravessar a praia, sem saber muito bem como é que tudo aquilo acabaria», p. 114). As referências ao passado de cada personagem são praticamente nulas, não existindo também qualquer ideia de futuro, de direcção. O presente é o tempo em que têm lugar acontecimentos que nunca são provocados. Dito de outro modo, aquilo que é vivido pelas personagens não tem, à partida, causa exterior - a sua «febre de inquietação» (expressão de um ensaio de Vergílio Ferreira que tem por título "Ansiedade/angústia e a cultura moderna" e que é possível ler aqui) é como a dor com que Beaumont trava conhecimento, i.e., assemelha-se a uma infecção interna. Contudo, não deixa de ser possível considerar que as várias formas de 'pequena loucura' (expressão que surge no texto de Le Clézio que apresenta as nove histórias) constituem, mais precisamente, reacções a tudo: «porque nem sequer há meio de poder recorrer ao nada para determinar a vida; o homem não está sozinho: coisas comuns e gritantes habitam-no, dão-lhe a sua forma», lê-se em "Um dia de velhice" (p. 213). São como reacções orgânicas de um animal humano, animal consciente da sua finititude, a um modo de vida em que o número das coisas que se fazem (como o número de quilómetros que um homem pode andar) não é «a lei de toda a vida profunda» (p. 103). Em passagens que lembram a definição sartriana de "inferno", os outros são descritos como a multidão anónima que vive mecanicamente, esquecida da sua fragilidade essencial. A multidão feita dos mesmos: «Os homens e as mulheres eram sempre os mesmos por toda a parte; nas suas faces pálidas, os traços não se mexiam, os narizes continuavam fixos, e as rugas não se multiplicavam. E no entanto, estavam em movimento, viviam de maneira ininterrupta» (p. 215).

Escrita que pretende descrever a alucinação, a subversão do real - escrita que procura dizer tudo o que, como a dor, parece escapar à possibilidade de comunicação -, a escrita de Le Clézio atinge também, em certos momentos, a clareza das descrições precisas e exactas.
Um exemplo perfeito é, a meu ver, "Martin", a história, em tom kafkiano, de uma 'metamorfose sem transformação', em que a possibilidade de compreender realmente a existência decorre da percepção de uma semelhança essencial: a semelhança entre o ser humano e um animal que se enrola sobre si mesmo para proteger «a vida palpitante» (p. 149).

Referência das páginas: A Febre, Lisboa: Editora Ulisseia, 2008.