Durante algum tempo após o desembarque, Ryuji esperou sentir
o mundo vacilar precariamente sob os seus pés e contudo, hoje mais
do que nunca no passado, sentia-se comodamente neste mundo ancorado e
amável, tal como uma peça dum puzzle encontra o seu lugar no conjunto.
O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar, p.99.
A história d'O Marinheiro que perdeu as graças do Mar (título original: Gogo No-Eiko, 1963) impressiona sobretudo pelo modo como Mishima descreve a terrível proximidade que pode existir entre o amor, a beleza e o mal (o mundo sem sentido, sem "âncora"), construindo uma narrativa em que a felicidade de Fusako e do marinheiro Ryuji está ameaçada, desde o primeiro momento, pelos códigos de um grupo de adolescentes que se orgulha da sua «impiedade ímpar» (p. 55). Na verdade, Mishima apresenta um combate entre o amor («Foi o mar que me fez começar a pensar no amor, mais do que noutra coisa; quero dizer, num amor por que valha a pena morrer, num amor que consuma uma pessoa», p. 44) e um idealismo que pretende, em nome de uma apologia do caos ou do «tremendo vazio do mundo» (p. 57), desafiar todos os limites que a sociedade impõe.
O sacrifício de Ryuji é a condenação do amor, de tudo o que representa uma segurança: uma «âncora». No fundo, ir ao encontro do amor significou, para o marinheiro, abdicar da perigosa oscilação das ondas e voltar a estabelecer uma ligação («Fusako olhou para a proa. A prancha tinha sido levantada; a última ligação entre o navio e a terra tinha sido cortada.». p. 92). Assim, é como se Mishima mostrasse que o grande perigo não é viver, como pensa o Chefe do grupo; o grande perigo que transformará a glória de Ryuji «numa coisa amarga» é um amor capaz de desafiar o caos absoluto. Afinal, a âncora do boné de Ryuji assemelhava-se a uma lágrima.
Referência das páginas: Yukio Mishima. O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar. Lisboa: Assírio & Alvim, Setembro de 2008 (3.ª ed.). Tradução de Carlos Leite a partir de tradução inglesa.