domingo, fevereiro 22, 2009

Elogio da leitura

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Que uma pessoa não leia nada (não leia livros, porque jornais e revistas as pessoas vão espreitando) não me parece problemático. O catastrofismo nestas matérias é absurdo. Quem (como eu) lê compulsivamente, considera a leitura o alfa e ómega da existência. Mas não é. Se há pessoas que tendo aptidão e possibilidade económica para comprar livros, preferem não o fazer, isso é com elas. Há um certo totalitarismo dos leitores face aos que não lêem que tem aspectos detestáveis. Os leitores tratam os outros como gentalha. E dizem sempre que que não lê «não sabe o que perde». Que os livros nos oferecem prazeres e sensações únicas e inesquecíveis. Mas também há quem diga isso do surf ou do sadomasoquismo. E nem toda a gente compra pranchas e chicotes. Não há pois nenhuma razão para que os letrados se achem acima dos outros, e considerem o seu gosto como gosto universal.

Mesmo porque isso comporta alguns equívocos. As pessoas que elogiam a leitura invocam todo o tipo de vantagens. No entanto, tirando a vantagem estética, a leitura de livros não tem nenhuma utilidade especial. É mesmo uma actividade eminentemente e gloriosamente inútil. Imaginar que a cultura nos torna moralmente melhores é um erro trágico (vejam a Alemanha no século passado). As pessoas que lêem não se distinguem das outras pela virtude. Só um platónico ingénuo imagina tal coisa. Digamos que a literatura serve para tornar mais complexa e subtil a nossa percepção do mundo. É como um determinado vinho que prepara o nosso paladar para certa comida. Mas isso é uma experiência individual, contingente, imprevisível. E não nos deve levar a supor que as pessoas letradas são melhores pessoas.

Mais importante: a literatura não traz felicidade. O mundo está cheio de letrados miseráveis e poetas suicidas. Ao passo que entre as pessoas genuinamente felizes que conheci, estão dezenas que certamente só leram capítulos e fotocópias. Há um certo conforto na literatura, mas a literatura problematiza, questiona, traz angústias suplementares às nossas angústias naturais.

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Pedro Mexia. "Victoria e os Livros". Primeira Pessoa. Casa das Letras, 2006, pp. 291-292.