Segundo li em alguns blogues - o Sound + Vision foi um deles -, a crítica de cinema entre nós andou agitada por causa do filme Slumdog Millionaire. No Expresso, Vasco Baptista Marques falou em «pornografia da pobreza» e «McDonaldização do real» (esta segunda expressão justificaria uma tese em semiótica...), sugerindo que o filme é um exemplo de como certas pessoas fazem cinema com a exploração da decadência e da pobreza. Como João Lopes já referiu no Sound + Vision, a brevidade do texto de Vasco Marques não ajuda na exposição do argumento. Na verdade, o argumento tem um ponto interessante se pensarmos que pode servir de mote para uma discussão sobre ética e arte; é que é muito difícil especificar quando, em cinema, se passa do "mostrar" ao "explorar". E, por vezes, a arte serve (verbo que uso aqui à falta de melhor) para isso mesmo: para lembrar que a decadência existe.
A intuição e algumas coisas que li levam-me a pensar que que há algo no filme Slumdog Millionaire que suscita facilmente embirrações: o final. Clarifico: o happy ending. Talvez pela influência que a concepção aristotélica da tragédia teve na apreciação da arte narrativa no Ocidente (ou talvez pela concepção cristã de que vive muita dessa arte), o final feliz está conotado com a pouca profundidade, como se, na condição humana (de que a arte será o espelho mais fiel), verdade e infelicidade coincidissem. Bom, o filme acaba bem, é um facto, mas não deixa de ser verdade que a história de um slumdog que se transforma em milionário é, num certo sentido, realista. É realista (i.e., fiel àquilo a que chamamos "vida") no sentido em que mostra que a vida é feita de coisas que controlamos e de outras que não controlamos (e é por isso que ideias como estas são um disparate), e que podemos ser felizes, ou experimentar 'momentos' de felicidade (uma inflexão para agradar aos mais cépticos), porque certas circunstâncias o determinaram. Fazemos coisas com vista à felicidade (sim, os clássicos têm sempre razão) mas nem sempre percebemos que coisas contribuem decisivamente para isso: para a nossa felicidade (para sabermos a "resposta certa") ou, veja-se a história do rei de Tebas, para a nossa infelicidade. Percebemos - esta é a nossa condição trágica, arrisco-me a dizer - quando relacionamos tudo (como Édipo ao ouvir o adivinho Tirésias), quando percebemos que a nossa vida é um enredo e que aquilo que fizemos teve determinadas consequências; e nesse momento, conhecendo ou não a felicidade, sabendo ou não as respostas, a vida faz sentido.
Como diz a dada altura o apresentador do programa, há situações que são "bizarramente possíveis". Não conheço explicação mais clara do conceito aristotélico de verosimilhança.