domingo, março 29, 2009

Ainda sobre a 'natureza literária' do adultério. Notas sobre "Madame Bovary" e "O Primo Basílio"

Henri Toulouse-Lautrec. La Toilette (1889), 67 × 54 cm
Musée d'Orsay, Paris.

Um tema - o do adultério - justifica, certamente, a aproximação de duas obras. Falo de Madame Bovary e de O Primo Basílio. Mas a aproximação fica mesmo pelo tema. É que não há semelhança possível entre a Emma de Flaubert e a Luísa de Eça. Emma Bovary é uma pessoa, alguém que desabafa com uma cadela (a cadela Djali), invejando a sorte do animal - 'que nem sorte se chama', como diz o poeta - e maldizendo a condição humana, sempre vulnerável à insatisfação e à tristeza. Emma é também uma leitora, mas não como a Luísa de Eça: como observa com preocupação a mãe de Charles, a 'putinha' lê livros sem religião, livros que citam Voltaire. Dedica-se mesmo a 'leituras sérias': filosofia, história...

Já no romance de Eça, Luísa é concebida como uma leitora incapaz de perceber a antítese entre a literatura ultra-romântica e a vida, ou como alguém que não compreende a lógica da ficção. E é este modo de ler que a faz julgar-se uma personagem de romance, ao contrário de Basílio, que lhe dirá "Fugir é bom nos romances!". O confronto com o "Paraíso" (o local que Basílio prepara para os encontros amorosos) é, neste sentido, uma aprendizagem sobre o lado prosaico da vida, incompatível com os devaneios poéticos. A lição implícita na descrição desse confronto prende-se com a necessidade de acentuar a incompatibilidade, mas deriva do pressuposto de que o «cérebro feminino» (expressão que aparece em O Mistério da Estrada de Sintra) exige protecção em matéria de leituras.

No romance de Flaubert, não é a leitura, por si só, que leva Emma ao adultério. Há nela um ódio contra Charles, contra a existência ridícula do marido (é esta existência que Flaubert apresenta nas primeiras páginas do romance), e, como a dada altura ficará claro, um ódio contra os homens, que não sabem 'o que é ser mulher'. Numa passagem em que Flaubert descreve de forma magnífica aquele ódio, Emma vai estabelecer uma comparação entre Rudolph e Charles; o resultado da comparação é um sentimento de vergonha e a consolidação da ideia de que o casamento constituiu um grande erro. Na verdade, se as causas do adultério, no romance de Eça, se prendem com a 'educação das senhoras' e com o papel que a literatura ultra-romântica tem nessa educação, as acções de Emma Bovary, na obra de Flaubert, nascem de escolhas específicas, escolhas que têm um argumento bastante forte a sustentá-las. Esse argumento é o facto de Charles ter desejado decidir por Emma aquilo que a faria feliz.