quinta-feira, março 12, 2009

A 'natureza literária' do adultério


Dance at Bougival (1883) by Pierre-August Renoir
Oil on Canvas 181.8 x 98.1cm; Museum of Fine Arts, Boston

«A maior parte da gente imagina que para uma mulher esta ideia e mesmo esta palavra - ter um amante - significa muito simplesmente - ter um homem que amam.

De modo nenhum: só muito raras, as descendentes de Fedra, pensam no homem. Para a generalidade das mulheres, ter um amante significa ter uma quantidade de ocupações, de factos, de circunstâncias a que, pelo seu organismo e pela sua educação, acham um encanto inefável. Ter um amante - não é para elas abrir de noite a porta do seu jardim. Ter um amante é ter a feliz, a doce ocasião destes pequeninos afazeres - escrever cartas às escondidas, tremer e ter susto; fechar-se a sós para pensar, estendida no sofá; ter o orgulho de possuir um segredo; ter aquela ideia dele e do seu amor, acompanhando como uma melodia em surdina todos os seus movimentos, a toilette, o banho, o bordado, o penteado; é estar numa sala cheia de gente, e vê-lo a ele, sério e indiferente, e só eles dois estarem no encanto do mistério; é procurar uma certa flor que se combinou pôr no cabelo; é estar triste por ideais amorosos, nos dias de chuva, ao canto de um fogão; é a felicidade de andar melancólica no fundo de um cupé; é fazer toilette com intenção, o maior dos encantos femininos, etc.

Estas pequeninas coisas, que enchem a sua existência, que a complicam em cor-de-rosa, que a idealizam - são a sua grande atracção. É o que amam. O homem, amam-no pela quantidade de mistério, de interesse, de ocupação romanesca que ela dá à sua existência. De resto, amam o amor. Havia muito deste sentimento nas místicas e nas antigas noivas de Jesus. Amavam a Deus porque ele era o pretexto do culto.»


Eça de Queiroz. Uma Campanha Alegre de «As Farpas». LXXXV (Outubro de 1872) Lisboa: Livros do Brasil, 2000, pp. 393-394.