«Que é a escrita do Flaubert? - Um museu variadíssimo de formas belas, de numerosas espécies: mas cada uma das páginas desse forte artista afigura-se-me um embrechado de pedrinhas preciosas; dir-se-ia fabricada com fragmentos breves, mecanicamente. Todos valiosíssimos, sem dúvida; mas em suma, pedaços, e de naturezas diferentes. O que pouco senti na elocução dos seus livros foi o movimento de conjunto que vitaliza o todo, a unidade orgânica do agregado; a fluidez, em resumo; o espraiamento, a fluência. E ainda que admitamos que se move aquilo, é um mover-se de elefante que traz um jaez magnífico, e que caminha a passo. Mas o estilo do Eça, comparado ao do Flaubert, é um iate à bolina - a cortar com agudeza, a deslizar rapidíssimo, a balançar-se com donaire sobre o entumescer das ondas. Os períodos, fulgentes, são o perpassar de um velame - e deslumbram quem lê. Tudo ali é vivente, tudo aquilo é nervoso; tudo é brilho, esbelteza, agilidade, graça, à luz que se cincunfunde do seu claro estilo.»
António Sérgio. "Notas sobre a imaginação, a fantasia e o problema psicológico-moral na obra novelística de Queirós". Ensaios, tomo VI. Lisboa: Sá da Costa, 1976 [1.ª ed. 1976], p. 57.