A Sonata de Kreutzer (1889), de Lev Tolstói, termina com um pedido de perdão. Quem pede perdão é Pózdnichev, alguém que matou por ciúme e a quem o narrador dá a palavra na novela (enquanto viaja numa carruagem de comboio, o narrador aceita ouvir a história de Pózdnichev). De facto, a obra é muitas vezes apresentada como um ‘ensaio sobre o ciúme’ – o que leva a supor que Pózdnichev é uma espécie de Otelo do século XIX. Mas para além da descrição magistral do ciúme – i.e., dos seus efeitos na percepção que Pózdnichev tem do mundo e dos outros –, há outro aspecto que desperta a atenção durante a leitura: o facto de haver um questionamento sobre o que define a natureza humana. Em vários momentos do discurso, Pózdnichev discorre sobre a diferença entre o comportamento animal e o comportamento humano. E logo no início, há um comerciante velho que diz: «o animal é gado, mas ao homem foi dada a lei» (p. 12). Este comerciante responde a uma mulher para quem o casamento deve nascer do amor, das inclinações, da simpatia – em suma, do sentimento. Em certo sentido, o discurso de Pózdnichev consiste na condenação desta ideia; para ele, o casamento é um mal porque nasce de inclinações que aproximam o humano do animal, mas do animal incompleto, incapaz de se submeter a Deus, à lei: «Se ela [Pózdnichev refere-se à sua mulher] fosse um animal completo, não sofreria tanto, teria fé em Deus […]» (p. 63). E noutras passagens, explicita-se o problema: «uma coisa que só os animais têm, isto é, a ausência de imaginação e de razão» (p. 62); «Quando estávamos sozinhos os dois, quase nos condenávamos ao silêncio, ou então tínhamos conversas que até os animais por certo poderiam ter» (p. 65). Sucumbir depois ao ciúme é (note-se a comparação) perder as características de um animal humano: «Como um animal na jaula: ora saltava do lugar e me aproximava da janela» (p. 99). Com efeito, quando “imagina” (traço distintivo dos humanos) a traição da mulher, Pózdnichev assume: «Mas quem é ela? Como antes, continua a ser um enigma para mim. Conheço-a apenas como animal» (p. 94). Na verdade, só a morte provocará a consciência do carácter "humano" do outro: «Olhei para os filhos, para o rosto dela, contundido e inchado, e pela primeira vez me esqueci de mim, dos meus direitos, do meu orgulho, e pela primeira vez vi nela um ser humano» (p. 112).
Lev Tolstói. A Sonata de Kreutzer. Lisboa: Relógio d’Água, 2007. Tradutores: Nina Guerra e Filipe Guerra.
Lev Tolstói. A Sonata de Kreutzer. Lisboa: Relógio d’Água, 2007. Tradutores: Nina Guerra e Filipe Guerra.