Após a legislação coerciva adequada ter sido instituída, é a vez do educador. Nessa altura, já não precisa de recear ser apedrejado pelos seus discípulos ignorantes e ultrajados. Uma vez protegido pelas leis, poderá ensinar-lhes, em segurança, a virtude, o conhecimento e a felididade. Poderá ensinar-lhes como viver. Poderá explicar-lhes porque é que é errado ser-se asceta ou monge, porque é que é irracional, fruto da má compreensão ou da natureza, tentar mortificar a carne ou estar triste ou melancólico. A tristeza e a melancolia serão assim eliminadas da Terra: toda a gente se tornará jovial, harmoniosa e feliz.
Isaiah Berlin. Rousseau e outros cinco inimigos da liberdade.
Lisboa: Gradiva, 2005, p. 39 (capítulo sobre Helvétius)
Já fui mais organizada nas minhas leituras. Agora deixo livros a meio, o que não é nada bom quando se trata de textos de leitura difícil, com um argumento denso. Mas quando a leitura é agradável também sinto que estou em falta. Hoje, por exemplo, interrompi a leitura de um livro que andava para comprar há algum tempo (e que se lê mesmo muito bem), o Rousseau e outros cinco inimigos da liberdade, de Isaiah Berlin - interrompi para vir aqui escrever sobre uma memória minha. É a memória de uma conversa que tive há uns anos com duas Testemunhas de Jeová. Ia eu apanhar o autocarro para Lisboa (na altura não havia comboio) quando vieram dar-me um daqueles folhetos onde aparecem pessoas com um grande sorriso, animais e muitas cores. Como estava sentada e sem ler nada, entregaram-me o folheto. Não sei se a minha reacção exprimiu simpatia, mas acabaram por se sentar também e, do nada, perguntam-me se eu era uma pessoa feliz (uma pergunta mesmo pessoal, e à qual, em dias de mau humor, eu teria respondido "Não tem nada a ver com isso"). Não respondi a isto, mas a conversa centrou-se na questão da felicidade no reino de Jeová, depois de eu ter tentado perceber como seria a vida nesse paraíso. Basicamente, seríamos todos muito felizes; a tristeza e a melancolia desapareceriam da face da Terra, disseram-me. E eu, lembro-me bem, tentei colocar questões relacionadas com a passagem do tempo. Como iria eu passar os meus dias até à eternidade? O que é que iríamos fazer? O que é que havia para fazer? O exemplo que me foi dado não poderia ser pior (para eles) e melhor (para mim, ou seja, para corroborar o meu cepticismo): arte. Falaram de pintura e disseram que poderíamos pintar - i.e., passar o nosso tempo a pintar - as obras de Jeová (no elogio da mimese mais estranho que eu já ouvi).
O autocarro acabou por chegar e eu fiquei a pensar na conversa. Hoje acho que não mudei muito de ideias sobre a explicação daquele tipo de fé: o que distingue as Testemunhas de Jeová dos católicos que conheço é, essencialmente, a questão do mistério. Os católicos que conheço nunca me diriam como é a vida eterna, nunca dissertariam sobre as coisas que se fazem nessa vida; têm uma fé que admite perfeitamente o mistério e a inefabilidade. Claro que há outras diferenças importantes. Pelo que percebi, as Testemunhas não falam apenas na vida eterna, mas da repetição da felicidade anterior ao pecado original, de um outro paraíso na Terra, onde nós (seres sem memória? corpos imunes à dor?) iríamos reconstruir tudo, depois de uma devastação universal. Enfim, para mim, o mais estranho é admitir-se como inteligível a ideia de pessoas sem dor nem tristeza, vivendo (?) para sempre.