domingo, abril 05, 2009

Lucio, o 'homenzinho', e a gata Nitchevo

«O pressentimento de que não iria conservar o emprego por muito mais tempo tornou-se uma obsessão: uma ideia que se agarrava ao cérebro e não o abandonava em momento algum. Apenas à noite, com Nitchevo, a gata, conseguia afastar, em parte, esses negros pensamentos. A presença do animal como que negava todos os desígnios da má sorte. É claro que Nitchevo não tinha nada a ver com a roda da fortuna; para ela tudo corria de acordo com uma ordem natural e determinada e não havia razão para apreensões. Todos os seus gestos eram lentos, calmos, revestidos de elegância e graça. Os olhos de âmbar detinham-se em cada objecto com olímpica serenidade. Nem em relação à comida se precipitava. Lucio trazia-lhe todas as noites leite para a ceia e para o pequeno-almoço; Nitchevo esperava tranquilamente, sentada sobre o traseiro, enquanto ele despejava o leite num pires velho emprestado pela proprietária e que colocava no chão, ao pé da cama. Depois estendia-se sobre os lençóis, observando e esperando que Nitchevo se dirigisse lentamente para o pires azul-claro. Levantava os olhos para ele uma vez - muito devagar - esses olhos amarelados e fixos; só depois começava a comer, baixando delicadamente o pequeno queixo para a borda do pires, avançando a ponta vermelha da língua; então, o quarto enchia-se da doce e leve música da sua boca a lamber. Lucio observava-a e ao fazê-lo era como se se esquecesse de tudo. Os apertados nós da angústia desatavam-se, libertando-o. Não sentia no fundo do corpo aquele sentimento opressivo, aquela tensão que fazia o coração bater tão depressa. Começava a ter sono enquanto a olhava - um sono que era quase êxtase. Nitchevo adquiria uma forma cada vez maior. O quarto perdia contornos, diluía-se. Parecia-lhe agora que eram do mesmo tamanho: sim, ele era um gato como Nitchevo - estavam deitados lado a lado no chão, lambendo leite no confortável e aconchegado calor de um quarto trancado, longe de fábricas e capatazes, longe de louras proprietárias de peito assombroso.
Nitchevo levava imenso tempo a lamber o leite. Lucio adormecia muitas vezes antes de ela acabar. Acordava mais tarde, sentindo o seu pequeno calor junto a si - com a mão dormente acariciava-a e sentia a levíssima vibração das vértebras enquanto ronronava. Estava a ficar gorda. Os flancos sobressaíam. É evidente que não houve nenhuma declaração de amor entre os dois, mas sabiam que havia um contrato entre eles, um contrato que duraria até ao fim da vida.
[...]
Nitchevo não precisava que lhe dissessem que Deus fixara residência nesta cidade. Já por duas vezes descobrira a sua existência: primeiro na pessoa do russo, e agora na de Lucio. É duvidoso que os distinguisse verdadeiramente. Ambos representavam a mesma infinita misericórdia. Tornavam-lhe a vida agradável e segura. Tiraram-na da rua e deram-lhe uma casa. Uma casa quente, e almofadas e tapetes macios. Vivia contente de dia e de noite, ao contrário de Lucio, com a sua alegria meramente nocturna. A dela era uma alegria perfeita, jamais interrompida. (Se Ele, o Criador, não ordenara todas as coisas da melhor maneira, a verdade é que concedera um inestimável dom aos animais, ao privá-los da inquietante faculdade de prever o futuro).»

Tennessee Williams. "A Maldição". A Noite da Iguana e Outras Histórias. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, pp. 16-17, 21. Tradução de José Agostinho Baptista.