terça-feira, dezembro 30, 2008

«Plays are not about nice things happening to nice people»

Interview With David Mamet

segunda-feira, dezembro 29, 2008

Belo e muito triste - "O Conto dos Crisântemos Tardios"



Este filme de Kenji Mizoguchi, de 1939, é a adaptação de uma história de Shofu Muramatsu e começa com a ideia de que o amor supõe, acima de tudo, a verdade. Se a adulação exclui a sinceridade, o amor entre Kikunosuke Onoue (o actor que só é apreciado devido ao nome de família) e a ama Otoku nasce, pelo contrário, sob o signo de uma apreciação verdadeira. Neste sentido, é notável o modo como Mizoguchi filma a felicidade de Kikunosuke ao perceber que existe quem consiga avaliar, de modo justo, o seu desempenho no teatro kabuki, e a intimidade que assim surge entre o actor e Otoku (refiro-me à cena em que as duas personagens comem juntas fatias de melancia). Esta intimidade é o início de uma relação que a tradição (o 'rumor') não permitirá. Por este motivo, ao mesmo tempo que procura tornar-se um grande actor, Kikunosuke irá rejeitar outros papéis que a sociedade lhe atribui.

domingo, dezembro 28, 2008

O caos e a âncora - "O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar"



Durante algum tempo após o desembarque, Ryuji esperou sentir
o mundo vacilar precariamente sob os seus pés e contudo, hoje mais
do que nunca no passado, sentia-se comodamente neste mundo ancorado e
amável, tal como uma peça dum puzzle encontra o seu lugar no conjunto.

O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar, p.99.


A história d'O Marinheiro que perdeu as graças do Mar (título original: Gogo No-Eiko, 1963) impressiona sobretudo pelo modo como Mishima descreve a terrível proximidade que pode existir entre o amor, a beleza e o mal (o mundo sem sentido, sem "âncora"), construindo uma narrativa em que a felicidade de Fusako e do marinheiro Ryuji está ameaçada, desde o primeiro momento, pelos códigos de um grupo de adolescentes que se orgulha da sua «impiedade ímpar» (p. 55). Na verdade, Mishima apresenta um combate entre o amor («Foi o mar que me fez começar a pensar no amor, mais do que noutra coisa; quero dizer, num amor por que valha a pena morrer, num amor que consuma uma pessoa», p. 44) e um idealismo que pretende, em nome de uma apologia do caos ou do «tremendo vazio do mundo» (p. 57), desafiar todos os limites que a sociedade impõe.

O sacrifício de Ryuji é a condenação do amor, de tudo o que representa uma segurança: uma «âncora». No fundo, ir ao encontro do amor significou, para o marinheiro, abdicar da perigosa oscilação das ondas e voltar a estabelecer uma ligação («Fusako olhou para a proa. A prancha tinha sido levantada; a última ligação entre o navio e a terra tinha sido cortada.». p. 92). Assim, é como se Mishima mostrasse que o grande perigo não é viver, como pensa o Chefe do grupo; o grande perigo que transformará a glória de Ryuji «numa coisa amarga» é um amor capaz de desafiar o caos absoluto. Afinal, a âncora do boné de Ryuji assemelhava-se a uma lágrima.

Referência das páginas: Yukio Mishima. O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar. Lisboa: Assírio & Alvim, Setembro de 2008 (3.ª ed.). Tradução de Carlos Leite a partir de tradução inglesa.

Harold Pinter (1930-2008)


Porque não é tarefa fácil caracterizar a relação entre arte e política - e porque talvez a arte seja afinal uma forma de "discussão pré-existencial": Harold Pinter.

«But all of these lessons in dramatic craftsmanship pale next to what he taught me about human existence and about - dare I say the word? - politics» (Ariel Dorfman, no artigo do Washington Post "The World That Harold Pinter Unlocked")

quinta-feira, dezembro 25, 2008

Biblioteca


Os livros que ganham pó
São como deuses sisudos
Olham-nos com sobranceria
Protegidos por capa dura


quarta-feira, dezembro 24, 2008

Naomi, ou a história de um pobre idiota


Ito Shinsui, O Início da Primavera, 1930

Em Naomi (tít. original Chijin No Ai), o belíssimo romance do escritor japonês Junichiro Tanizaki, o leitor encontra um conjunto não pequeno de referências a um período decisivo da história moderna do Japão, período marcado pela ocidentalização que se seguiu ao fim de um isolamento secular. Neste sentido, não incorremos em erro ao afirmar que Naomi mostra os efeitos de uma aculturação quase súbita que se reflectiu na arquitectura, na moda, nas relações afectivas e em «novas doutrinas e filosofias de toda a espécie» (p. 7), nem ao acrescentar que o romance não veicula uma perspectiva muito optimista acerca deste fenómeno, como se Tanizaki pretendesse sublinhar a diferença entre abertura e descaracterização, ou mesmo mostrar a irracionalidade do fascínio por uma cultura quando este fascínio implica abdicar de tudo o que somos.
Na verdade, a reflexão sobre os efeitos da ocidentalização na cultura nipónica constrói-se a partir da descrição de aspectos do comportamento de Naomi, a japonesa que é o amor de Joji e o centro da narrativa. O romance de Tanizaki apresenta assim a história de um amor que começa como um «conto de fadas» e culmina na vitória da obsessão (de quem ama) e da perversidade lasciva (de quem é amado). Na fase idílica dos «contos de fadas», é particularmente belo o modo como é descrita a mistura de ternura e desejo que caracteriza a relação entre Joji e Naomi; veja-se, por exemplo, a passagem em que Joji, o narrador, “cita”, num estilo de que Nabokov se aproxima nos melhores momentos de Lolita, o diário onde começou a relatar o desenvolvimento de Naomi, como se esta fosse um bebé. Depois desta fase poética e ingénua, Naomi torna-se uma espécie de “Cleópatra” e Joji faz o papel de Marco António, ou seja, o papel do grande “idiota” que sucumbe aos encantos daquela que educou (sim, também é possível interpretar a obra de Tanizaki como a história de uma educação falhada...) para ser a mulher perfeita. E nós, leitores, reagimos em muitos momentos como a turma de Joji na aula de História: rimos.
Se nos permitirmos a referência a um texto fundador da cultura ocidental como é o Banquete, a noção de “amor” implícita no romance de Tanizaki cinge-se ao primeiro estádio do amor platónico: é a beleza do corpo de Naomi, a pele, os seios, a saliência das ancas, que imobilizam, desde o primeiro momento, a razão de Joji, transformando o seu afecto num sentimento que está no limiar da demência. E porque a literatura é, em última análise, a natureza humana mostrada em exemplos, o romance de Tanizaki desafia assim o tipo de leitura que converte o texto literário num objecto analisável unicamente em termos histórico-culturais.

Referência das páginas: Naomi. Lisboa: Relógio d'Água, 2007. Tradução e notas de Margarida Piriquito. A obra de Tanizaki começou a ser publicada em folhetins em 1924..

segunda-feira, dezembro 22, 2008

Luxos (parte II)


Até que enfim: a segunda parte da entrevista de João Pereira Coutinho (faltam ainda duas...).

Ainda sobre a poesia, a arte e a literatura como coisas supérfluas, luxos... Ou apenas consequências do 'facto de vivermos sem temer pela nossa existência'. A política é uma 'discussão pré-existencial'; afinal, que sentido fará a pergunta "onde está o Flaubert dos Zulus?" (JPC citando Saul Bellow).

(A imagem em cima é de Gustave Doré e surge numa edição de Paradise Lost c. 1880)

quarta-feira, dezembro 17, 2008

Estômago para escrever - 'Fome', de Knut Hamsun



As costas das mãos, flácidas, um pouco indecentes, atormentavam-me,
causavam-me desconforto. Sentia mera repugnância ao olhar
para os meus dedos cadavéricos, detestava todo o meu corpo encovado
e causava-me arrepios arrastá-lo, senti-lo à minha volta.
Knut Hamsun, Fome

Paul Auster, num ensaio cujo título ("A Arte da Fome") remete para um conto de Franz Kafka ("O Artista da Fome"), destaca três ideias essenciais acerca do romance Fome (título original 'Snut'), de Knut Hamsun: é uma obra que não obedece aos requisitos do romance tradicional, na medida em que os acontecimentos têm lugar no mundo subjectivo do narrador; o narrador é, à semelhança da personagem central de Crime e Castigo, um 'mostro de arrogância intelectual'; apesar de não existir no romance uma referência explícita ao problema da escrita e da criação literária, ele tem subjacente uma concepção de arte.

Sobre ao primeiro ponto sublinhado por Auster, o romance exibe de facto a exploração, que Joyce elevaria a um outro nível, dos meandros da consciência, destacando-se os momentos em que o narrador reflecte, em monólogos vertiginosos que a fome suscita, sobre os limites da lucidez e da demência. Com efeito, a descrição do processo de escrita torna impossível ao leitor garantir que a loucura está ausente dos actos do escritor faminto, que deseja escrever no limite, i.e., quando a fome ameaça vencer o corpo (como Auster também nota, a noção de arte que está implícita nesta atitude é a de que a arte que não se distingue da vida, implicando um comprometimento real). E o mais curioso é o facto de o narrador nada fazer para impedir a aproximação daquele limite; a sua inteligência parece sucumbir a imperativos que relevam de uma moralidade muito distorcida, cheia de contradições.

É igualmente justa a observação de Auster sobre a arrogância do narrador de Fome, a lembrar a megalomania de um Raskolnikov. A arrogância manifesta-se sobretudo em gestos estúpidos, mediante os quais o narrador mente sobre a sua situação. É aliás notável a forma como Hamsun consegue escrever como se evitasse suscitar qualquer sentimento de compaixão. Do mesmo modo, trata o tema da fome sem recorrer a uma contextualização política, permitindo assim que o indivíduo se eleve acima da história.

Knut Hamsun, Fome. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2008. Tradução de Liliete Martins. Prefácio de Paul Auster ("A Arte da Fome"). Data da primeira publicação: 1890.

Inquéritos sobre Poesia e Literatura

Gustavo Rubim, professor de literaratura da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, fala sobre o questionamento da ideia de "livro" ao longo do século XX - e refere, a este propósito, o caso evidentíssimo das "espectaculares ruínas textuais" do Livro do Desassossego (a minha intuição autoriza-me a estabelecer uma analogia entre este texto em ruínas e o livro com que Mallarmé sonhava, e que também tinha maiúscula) -, sobre a beleza poética de Pena Capital, de Cesariny, e sobre o 'entretenimento espiritual' que significou o seu contacto com a obra Clepsydra, de Camilo Pessanha.

segunda-feira, dezembro 15, 2008

Luxos

«A discussão sobre arte é um luxo».

João Pereira Coutinho em entrevista (aqui).

sexta-feira, dezembro 12, 2008

Resposta (académica) à Academia Sueca - 'Northern Arts: The Breakthrough of Scandinavian Literature and Art, From Ibsen to Bergman'


«[...] Kibitzers who annually mock the Academy for ignoring immortals generally don't know that Alfred Nobel's will requires the prize to go to an author whose work exhibits "an idealistic tendency." That leaves the Academy's much-criticized stiffing of writers such as Borges less a mark of incompetence than what lawyers call fiduciary duty.

But an imposing new critical work makes December an ideal month to turn the Engdahl controversy ironically on its head. Arnold Weinstein's just-published Northern Arts: The Breakthrough of Scandinavian Literature and Art, From Ibsen to Bergman (Princeton University Press) is the most ambitious American effort in memory to view Scandinavian culture whole. It unfolds as if the head of our National Book Awards had denounced Scandinavian culture as too hermetic to merit attention in the United States. Almost in reply to such an imagined slight, Weinstein celebrates his subject for projecting a globally influential ethos that transcends any role as merely an occasional producer of world-class artists.

Weinstein, a professor of comparative literature at Brown University, is an American from Memphis, so he can't be accused of jingoistic special pleading (though his acknowledgments charmingly merge his love for Scandinavian culture with that for his Swedish wife, Ann Cathrine Berntson). While you might think that a scholar bent on special pleading for a culture's artistic accomplishment is living in a doll's house if he believes scholarship can persuade the masses, Northern Arts aptly raises questions at the crossroads of the cosmopolitan and provincial.

Weinstein's overriding aim is to undermine any image of Scandinavian literature and art as insular or peripheral. He brims with appreciation for "the nonobvious sensuousness of the North, the vibrancy, vitality, and occasional madness and lunacy that are deeply but securely lodged underneath the stolid Scandinavian manner".
[...]»

O texto completo de Carlin Romano aqui.

Arte e Singularização

«E eis que para se ter a sensação da vida, para sentir os objectos, para sentir que a pedra é pedra, existe aquilo a que se chama arte. A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo da singularização dos objectos e o processo consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O acto de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se "tornou" não interessa à arte.»

V. Chklovski. "A arte como processo", in Tzvetan Todorov. Teoria da Literatura - I. Textos dos formalistas russos. Lisboa: Edições 70, 1999 (1.ª edição Théorie de la Littérature, 1965)

Breve apontamento sobre a "seriedade" (Quadratura do Círculo)

Esta noite, no programa Quadratura do Círculo, discutiu-se o problema das faltas dos deputados. Depois de Pacheco Pereira ter proferido palavras pouco simpáticas sobre as qualidades políticas das pessoas que estão na Assembleia da República - a "qualidade política" releva, em seu entender, do sentido de dedicação ao serviço público -, Lobo Xavier sublinhou a pouca importância que o Parlamento tem hoje, não apenas em Portugal, e opinou sobre a transformação dos deputados em funcionários públicos. Referindo-se ao tempo em que era deputado e líder de bancada, considerou que, desde então, foi imposto um sistema de controlo muito rígido. A adopção deste sistema, sugeriu Lobo Xavier, supõe a dúvida sobre a palavra dos deputados - uma dúvida acerca da sua "seriedade". Sobre isto, penso duas coisas: o raciocínio de Lobo Xavier está, em certa medida, certo (i.e., este raciocínio está certo ao supor que a sociedade se deve reger pelo princípio de que, até prova em contrário, as pessoas são sérias); deste raciocínio, não se segue, porém, a conclusão, ou seja, a ideia de que a palavra (dita a quem?) basta. Saber o que se faz no Parlamento é um direito de quem tem o dever de votar, e dispor de meios para poder saber o que por se faz não implica a acusação de falta de seriedade.

quarta-feira, dezembro 10, 2008

Symposium

«And who will deny that the creative power by which all living things are begotten and brought forth is the very genius of Love? Do we not, moreover, recognize that in every art and craft the artist and the craftsman who work under the direction of this same god achieve the brightest fame, while those that lack his influence grow old in the shadow of oblivion? It was longing and desire that led Apollo to found the arts of archery, healing, and devination - so he, too was a scholar in the school of Love.»


Plato, "Symposium", The Collected Dialogues, including the Letters. Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns. Princeton University Press, 1961.

terça-feira, dezembro 09, 2008

Homens e vermes. A Febre, de Le Clézio


Por fim, com frenesim, todo o corpo transformado em
máquina de cavar, insecto debatendo-se, torcendo-se
no meio do terrapleno, furando buracos por toda a parte,
com os braços, as pernas, os ombros, as ancas, a cabeça mesmo.
"Martin"

...nunca, não, nunca se saberá verdadeiramente até
que ponto o homem não passa dum vermezinho.
"Um dia de velhice"

"A febre", "O dia em que Beaumont travou conhecimento com a sua dor", "Parece-me que o barco se dirige para a ilha", "Atrás", "O homem que anda", "Martin", "O mundo está vivo", "Então poderei encontrar a paz e o sono" e "Um dia de velhice" fazem parte de uma obra que Jean-Marie Gustave Le Clézio, distinguido com o Prémio Nobel da Literatura 2008, publicou em 1965 (tit. orig. La Fièvre) e que a Ulisseia editou no mês passado, com tradução de Liberto Cruz. Se o modo clássico de narrar se define por um princípio de coerência a que por vezes se chama 'aristotélico', princípio segundo o qual as histórias bem contadas têm princípio, meio e fim, as 'histórias de loucura' reunidas em A Febre são, exactamente, narrativas que negam a noção clássica de bem contar. Este traço parece, no entanto, decorrer de aspectos da 'vida imitada', e não tanto, ou apenas secundariamente, de uma opção estética (do mesmo modo, é improvável uma apreciação meramente estética de "experiências" como o nouveau roman; nestas experiências literárias, associadas a um período em que a palavra "Deus" foi banida do vocabulário de certa filosofia, não deixa de estar em causa, quase freudianamente falando, um certo mal-estar).

Com efeito, quase todas as personagens das histórias de A Febre se caracterizam por uma vivência em que se perdeu a correlação entre sentido e fim. Paoli, na história "O homem que anda", caminha sem sentido, caminha por caminhar («Obliquou então para a direita, e começou a atravessar a praia, sem saber muito bem como é que tudo aquilo acabaria», p. 114). As referências ao passado de cada personagem são praticamente nulas, não existindo também qualquer ideia de futuro, de direcção. O presente é o tempo em que têm lugar acontecimentos que nunca são provocados. Dito de outro modo, aquilo que é vivido pelas personagens não tem, à partida, causa exterior - a sua «febre de inquietação» (expressão de um ensaio de Vergílio Ferreira que tem por título "Ansiedade/angústia e a cultura moderna" e que é possível ler aqui) é como a dor com que Beaumont trava conhecimento, i.e., assemelha-se a uma infecção interna. Contudo, não deixa de ser possível considerar que as várias formas de 'pequena loucura' (expressão que surge no texto de Le Clézio que apresenta as nove histórias) constituem, mais precisamente, reacções a tudo: «porque nem sequer há meio de poder recorrer ao nada para determinar a vida; o homem não está sozinho: coisas comuns e gritantes habitam-no, dão-lhe a sua forma», lê-se em "Um dia de velhice" (p. 213). São como reacções orgânicas de um animal humano, animal consciente da sua finititude, a um modo de vida em que o número das coisas que se fazem (como o número de quilómetros que um homem pode andar) não é «a lei de toda a vida profunda» (p. 103). Em passagens que lembram a definição sartriana de "inferno", os outros são descritos como a multidão anónima que vive mecanicamente, esquecida da sua fragilidade essencial. A multidão feita dos mesmos: «Os homens e as mulheres eram sempre os mesmos por toda a parte; nas suas faces pálidas, os traços não se mexiam, os narizes continuavam fixos, e as rugas não se multiplicavam. E no entanto, estavam em movimento, viviam de maneira ininterrupta» (p. 215).

Escrita que pretende descrever a alucinação, a subversão do real - escrita que procura dizer tudo o que, como a dor, parece escapar à possibilidade de comunicação -, a escrita de Le Clézio atinge também, em certos momentos, a clareza das descrições precisas e exactas.
Um exemplo perfeito é, a meu ver, "Martin", a história, em tom kafkiano, de uma 'metamorfose sem transformação', em que a possibilidade de compreender realmente a existência decorre da percepção de uma semelhança essencial: a semelhança entre o ser humano e um animal que se enrola sobre si mesmo para proteger «a vida palpitante» (p. 149).

Referência das páginas: A Febre, Lisboa: Editora Ulisseia, 2008.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

'Palavras de fósforo' (uma definição de poesia?)

«Palavras de fósforo nasciam em silêncio, enterradas no mais profundo da cabeça, talvez na nuca, e essas palavras acendiam-se e apagavam-se, também, na noite do vazio pré-histórico, prontas a organizarem-se em frases, a modelarem proposições circunstanciais, conjuntivas, interrogativas. Como se reticências as tivessem ligado entre si.»

J. M. G. le Clézio, "O dia em que Beaumont travou conhecimento com a sua dor".

Excerto de uma das 'nove histórias de loucura' incluídas em A Febre (Lisboa: Editora Ulisseia, 2008. Tradução de Liberto Cruz. 1.ª edição - Paris: Gallimard, 1965).

domingo, dezembro 07, 2008

O berço

Poema

Tu estás em mim como eu estive no berço
como a árvore sob a sua crosta
como o navio no fundo do mar


Mário Cesariny, Pena Capital.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

A felicidade não tem história. 'A Viagem do Elefante'

Diz-se, depois de que primeiro o tivesse dito tolstoi,
que as famílias felizes não têm história.
Também os elefantes felizes não parece que a tenham.
José Saramago, A Viagem do Elefante

Na passagem que abre este post, Saramago, fazendo alusão às primeiras palavras do romance Anna Karénina, apresenta uma definição exacta do seu livro mais recente: este livro é a história de um elefante infeliz, porque só os (elefantes) infelizes têm uma história (a Poética de Aristóteles diz, sobre as pessoas, uma coisa parecida por outras palavras...). Classificar o livro como "romance" é ir de encontro à classificação do autor, que, no programa Pessoal...e Transmissível e noutros lugares, defendeu antes a etiqueta "conto longo" (José Saramago parece aliás dar-se mal com certas teorizações sobre o fenómeno literário. Em tempos, afirmou que a distinção entre narrador e autor carecia de fundamento. Segundo relatos de quem estava presente - em Coimbra, creio -, alguns professores de Literatura e de Teoria da Literatura sentiram-se incomodados).

Taxinomias à parte, a crítica tem vindo a descrever o livro como um dos melhores de Saramago desde a atribuição do Nobel (para alguns, a leitura levou à 'reconciliação' com o autor de Memorial do Convento; para outros, a publicação de A Viagem do Elefante é a cereja em cima do bolo, sendo "o bolo" a série de actividades na quais o escritor dá provas de grande vitalidade). A meu ver, há de facto uma diferença, algo de novo, nesta obra de Saramago, mesmo em relação ao romance de 1982. Não diria, como também já se disse, que a novidade se prende com o facto de a narrativa deixar de estar subordinada a "intenções alegorizantes", que transformam a interpretação numa espécie de jogo de adivinhação. Parece-me antes que Saramago, que parece ter lido/ouvido a definição de «romancista» dada por Miguel Esteves Cardoso no n.º 75 da Ler (i.e., o romancista é aquele que conta histórias), escreve a história da viagem de Salomão com uma concepção diferente da "interpretação" e do acto de "ler", concepção que em dados momentos se torna explícita (no n.º 994 do JL, afirma: «As interpretações que possa suscitar são evidentemente livres [...]»).

Há um momento da história em que um padre é chamado a exorcizar, por via das dúvidas, o elefante que D. João III ofereceu a Maximiliano da Áustria. Antes da acção purificadora, há uma discussão sobre a coerência de Jesus (que, sem justificação, matou os porcos onde estavam alojados seres diabólicos, os Demónios que também inspiraram Dostoiévski) que leva o cura a insurgir-se contra um homem que fala dos escritos sagrados sem "saber ler": «E tu quem és para dizeres que jesus não pensou bem, Está escrito, padre, Mas tu não sabes ler, Não sei ler, mas sei ouvir, Há alguma bíblia em tua casa, Não, padre, só os evangelhos, faziam parte de uma bíblia, mas alguém os arrancou de lá, E quem os lê, A minha filha mais velha, é verdade que ainda não consegue ler de corrido, mas, graças às vezes que já leu o mesmo, vamos percebendo-a cada vez melhor» (p. 81). O interessante é que o aviso dado pelo padre, a quem cabe apontar o caminho/a leitura («lembra-te de que quem se mete por atalhos, nunca sai de sobressaltos»), parece descrever a noção do que é compreender ou interpretar o mundo que a narração das várias "peripécias" da viagem vai sugerir.

Como um membro da caravana a quem coube a tarefa de transformar a história (quase épica) de Salomão em Literatura, o narrador/autor acompanha o que acontece, mas, porque está especialmente atento ao funcionamento das palavras (cf. p. 84, p. 155), não dá pistas conclusivas que permitam, por exemplo, asseverar que aquele elefante representa uma pessoa (e que o romance é uma descrição fatalista da existência, um pouco à Ricardo Reis). Podemos falar do romance deste modo, e considerar que a viagem é, como sempre, metáfora de um caminho que é o da própria vida, mas não é Saramago que o determina. Como os humanos, Salomão está sujeito à lei da vida, ou seja, à lei que introduz uma curta distância entre o triunfo e o olvido, mas não deixa de ser um elefante cujos dejectos ofendem o olfacto delicado do arquiduque. De certo modo, é como se a narrativa, porque é feita de palavras (tudo o que temos), fosse apenas o início de uma conversação (p. 84), uma conversação sobre o sentido, algo que, como a própria literatura, talvez se confunda com a "eternidade".

(Referência das páginas: edição da Caminho)

terça-feira, dezembro 02, 2008

Amizade e Interpretação

Uma boa maneira de descrever algumas das coisas que
fazemos às coisas seria dizer que, em todo o mundo, grupos
diferentes de pessoas se reúnem à volta de muitos bocados desse
mundo, atribuindo-lhe intenções, disposições e até linguagens.
Miguel Tamen, Amigos de Objectos Interpretáveis

O livro Amigos de Objectos Interpretáveis é percorrido por uma teoria sobre a interpretação. Na introdução, onde é apresentada uma síntese clara do argumento, Miguel Tamen enumera três teses que o leitor irá encontrar: uma tese sobre a linguagem e sobre o seu uso numa ‘sociedade de amigos’; uma tese que rejeita a existência de objectos possuidores de algo como uma “essência interpretável”; e uma tese sobre pessoas responsáveis pela existência de objectos interpretáveis. Uma teoria da amizade une estas teses, uma vez que se acredita ser o acto interpretativo uma prática de sociedades de amigos (i.e., esta teoria supõe que o acto de interpretar coisas como poemas ou pinturas pode ser análogo ao de fazer amigos). A referência a Aristóteles não fica implícita, e Tamen acrescenta a esta referência dois aspectos: primeiro, a amizade é sintoma de consenso, ideia que surge no início da dissertação aristotélica sobre a amizade nas várias Éticas (para Tamen, sociedades de amigos de determinados objectos caracterizam-se pelo consenso relativamente ao modo de lidar com esses objectos); segundo, é possível falar de amizade sem reciprocidade no sentido aristotélico (i.e., algumas sociedades de amigos limitam-se a ‘fazer falar’ certos objectos).

Título original: Friends of Interpretable Objects (2001). Tradução portuguesa de David Neves Antunes (Lisboa: Assírio & Alvim, 2003).

Alberto Caeiro também se divertia

Entrevista com Alberto Caeiro
«- O amigo que me enviou o seu livro disse-me que ele era renascente, isto é, filiado na corrente da Renascença Portuguesa. Mas eu não creio...
- E faz muito bem. Se há gente que seja diferente da minha obra, é essa. O seu amigo insultou-me sem me conhecer comparando-me com essa gente. Eles são místicos. Eu o menos que sou é místico. Que há entre mim e eles? Nem o sermos poetas, porque eles o não são. Quando leio Pascoaes farto-me de rir. Nunca fui capaz de ler uma cousa dele até ao fim. Um homem que descobre sentidos ocultos nas pedras, sentimentos humanos nas árvores, que faz gente dos poentes e das madrugadas almas. É como o idiota belga dum Verhaeren, que um amigo meu, com quem fiquei mal por isso, me quis ler. Esse então é inacreditável.
- A essa corrente pertence, parece, a Oração à Luz de Junqueiro.
- Nem poderia deixar de ser. Basta ser tão má. O Junqueiro não é um poeta. É um arranjador de frases. Tudo nele é ritmo e métrica. A sua religiosidade é uma léria. A sua adoração da natureza é outra léria. [...]».

Alberto Caeiro. Poesia. Edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith. Obras de Fernando Pessoa / 18. Lisboa: Assírio & Alvim, 2.ª ed., 2004.
Excerto da "resposta" de Pascoaes aqui.