terça-feira, março 31, 2009

A não perder mesmo


domingo, março 29, 2009

Ainda sobre a 'natureza literária' do adultério. Notas sobre "Madame Bovary" e "O Primo Basílio"

Henri Toulouse-Lautrec. La Toilette (1889), 67 × 54 cm
Musée d'Orsay, Paris.

Um tema - o do adultério - justifica, certamente, a aproximação de duas obras. Falo de Madame Bovary e de O Primo Basílio. Mas a aproximação fica mesmo pelo tema. É que não há semelhança possível entre a Emma de Flaubert e a Luísa de Eça. Emma Bovary é uma pessoa, alguém que desabafa com uma cadela (a cadela Djali), invejando a sorte do animal - 'que nem sorte se chama', como diz o poeta - e maldizendo a condição humana, sempre vulnerável à insatisfação e à tristeza. Emma é também uma leitora, mas não como a Luísa de Eça: como observa com preocupação a mãe de Charles, a 'putinha' lê livros sem religião, livros que citam Voltaire. Dedica-se mesmo a 'leituras sérias': filosofia, história...

Já no romance de Eça, Luísa é concebida como uma leitora incapaz de perceber a antítese entre a literatura ultra-romântica e a vida, ou como alguém que não compreende a lógica da ficção. E é este modo de ler que a faz julgar-se uma personagem de romance, ao contrário de Basílio, que lhe dirá "Fugir é bom nos romances!". O confronto com o "Paraíso" (o local que Basílio prepara para os encontros amorosos) é, neste sentido, uma aprendizagem sobre o lado prosaico da vida, incompatível com os devaneios poéticos. A lição implícita na descrição desse confronto prende-se com a necessidade de acentuar a incompatibilidade, mas deriva do pressuposto de que o «cérebro feminino» (expressão que aparece em O Mistério da Estrada de Sintra) exige protecção em matéria de leituras.

No romance de Flaubert, não é a leitura, por si só, que leva Emma ao adultério. Há nela um ódio contra Charles, contra a existência ridícula do marido (é esta existência que Flaubert apresenta nas primeiras páginas do romance), e, como a dada altura ficará claro, um ódio contra os homens, que não sabem 'o que é ser mulher'. Numa passagem em que Flaubert descreve de forma magnífica aquele ódio, Emma vai estabelecer uma comparação entre Rudolph e Charles; o resultado da comparação é um sentimento de vergonha e a consolidação da ideia de que o casamento constituiu um grande erro. Na verdade, se as causas do adultério, no romance de Eça, se prendem com a 'educação das senhoras' e com o papel que a literatura ultra-romântica tem nessa educação, as acções de Emma Bovary, na obra de Flaubert, nascem de escolhas específicas, escolhas que têm um argumento bastante forte a sustentá-las. Esse argumento é o facto de Charles ter desejado decidir por Emma aquilo que a faria feliz.

Publicidade ao "The Complete Cartoons of the New Yorker"

Lee Lorenz, 1995


Roz Chast, 1993


James Stevenson, 2000

Música para o fim-de-semana (e não só)

Gostaria de ter colocado aqui o tema "Selfish Woman", mas não o encontrei no youtube. O tema está incluído em "The Return of Roosevelt Sykes":

Sim, este post vem com algum atraso (melhor seria ter escrito "música para o fim do fim-de-semana"), o que se explica com o excelente serviço que a Cabovisão presta aos seus clientes.

quinta-feira, março 26, 2009

'The Unbearable Lightness of Being'


The Unbearable Lightness of Being é um filme de 1988 baseado no romance que Milan Kundera publicou em 1984. Sendo a obra de Kundera um romance escrito como uma «partitura musical» (Joana Varela, no posfácio da edição da Dom Quixote, 24.ª ed., p. 362), e um romance onde as digressões filosóficas funcionam como chaves para a interpretação, o filme realizado por Philip Kaufman teve, à partida, um desafio: contar a história sem que se sentisse a ausência de tais digressões, sem que se notasse a ausência do texto literário. Há no romance de Kundera, é certo, uma densidade poética e filosófica que coloca dificuldades a uma tradução para a forma visual, cinematográfica. É o caso da questão do kitsch (e da inevitabilidade do kitsch nas relações humanas), uma questão que, no filme, é formulada numa frase proferida por Sabina, a mulher do chapéu, embora ocupe um espaço significativo nas reflexões do romance; reflexões ou desvios à narrativa em que a problematização filosófica e a caracterização psicológica das personagens - filosofia e psicologia - se confundem.

Parece-me, no entanto, que o filme consegue mostrar a intensidade poética e o alcance filosófico e moral daquilo que é vivido pelas personagens, tornando pouco provável que sintamos uma desproporção entre o que cada personagem faz e a sua 'filosofia de vida', i.e., o conjunto de ideias sobre o sentido da vida, que só em certos momentos são explicitamente formuladas (eg. na carta em que Tereza explica as razões que a levam a regressar a Praga depois de 1968, a regressar ao 'país dos fracos'). Dito de outro modo, o filme consegue, a meu ver, impedir que as personagens se assemelhem a 'bonecos' exemplificando as concepções filosóficas e morais que determinam o tom do romance. Há dois momentos em que isso me parece particularmente bem conseguido. O primeiro é o momento em que Tereza (Juliette Binoche) fotografa Sabina (Lena Olin). As lágrimas que correm no momento em que as fotografias são tiradas - ou seja, quando Tereza vai vendo, através da (ou protegida pela) máquina fotográfica, o corpo que o marido, Tomas (Daniel Day-Lewis), deseja - mostram o sofrimento que nasce da consciência da impossibilidade de conceber uma vida 'leve', uma vida cujo sentido não dependa da ligação total a uma pessoa. Ou uma vida em que sexo e amor não signifiquem o mesmo. A agressividade com que tira cada fotografia é, na verdade, a violência que Tereza aplica a si mesma, para se castigar por aquilo a que chama 'fraqueza'; fotografar o corpo de Sabina é, neste sentido, uma provação semelhante a dormir com um desconhecido. Por outro lado, as lágrimas de Sabina e o olhar apavorado que acompanha essas lágrimas no momento em que Franz (Derek de Lint) lhe propõe, como forma de vida autêntica ('a life with no more lies'), uma vida a dois, mostram exactamente o oposto: são uma reacção que traduz a impossibilidade - ou o medo - de aceitar um vínculo, ou de aceitar que a felicidade exige decisões que nos prendam às pessoas.

segunda-feira, março 23, 2009

Nova Iorque: coisas muito boas, coisas estranhas e prendas

Coisas muito boas...

Charles Tolliver Big Band no Blue Note Jazz Club, para interpretar isto:


Coisas estranhas...

Pessoas que vendem 'Obama condoms' em Times Square


(No momento em que escrevo isto, o meu cérebro está a fazer um esforço enorme para não se pôr a imaginar esta ideia em contexto nacional...)

Prendas...

domingo, março 15, 2009

Vou ali passear...

Na verdade, é em trabalho, e justifica que este blogue só volte a ser actualizado daqui a uma semana.

sábado, março 14, 2009

'a quinta linha da página 161'

O Manuel passou-me a corrente aqui: "trata-se de assinalar a quinta linha da página 161 de um livro que se esteja a ler..."

Bom, estou a ler dois, e muito diferentes.

O primeiro é Eça de Queiroz. Literatura e Arte. Uma antologia. Trata-se de um conjunto de textos organizado por Beatriz Berrini (Lisboa: Relógio d'Água, 2000). E a quinta linha da página 161 é:
«seguido pela ideia de um romance histórico e, com uma fina ironia,»

O segundo é poesia. É um livro com reúne vários textos (poesia e prosa) de Rimbaud: Poésies. Une Saison en enfer. Illuminations (Paris: Gallimard, 1999). E a quinta linha - neste caso, verso - da página 161 é:
«Puis, comme rose et sapin du soleil»

Lê-se no prefácio de René Char: «Avec Rimbaud la poésie a cessé d'être un genre littéraire, une compétition.» (p. 12).

Música para o fim-de-semana (e não só)

quinta-feira, março 12, 2009

A 'natureza literária' do adultério


Dance at Bougival (1883) by Pierre-August Renoir
Oil on Canvas 181.8 x 98.1cm; Museum of Fine Arts, Boston

«A maior parte da gente imagina que para uma mulher esta ideia e mesmo esta palavra - ter um amante - significa muito simplesmente - ter um homem que amam.

De modo nenhum: só muito raras, as descendentes de Fedra, pensam no homem. Para a generalidade das mulheres, ter um amante significa ter uma quantidade de ocupações, de factos, de circunstâncias a que, pelo seu organismo e pela sua educação, acham um encanto inefável. Ter um amante - não é para elas abrir de noite a porta do seu jardim. Ter um amante é ter a feliz, a doce ocasião destes pequeninos afazeres - escrever cartas às escondidas, tremer e ter susto; fechar-se a sós para pensar, estendida no sofá; ter o orgulho de possuir um segredo; ter aquela ideia dele e do seu amor, acompanhando como uma melodia em surdina todos os seus movimentos, a toilette, o banho, o bordado, o penteado; é estar numa sala cheia de gente, e vê-lo a ele, sério e indiferente, e só eles dois estarem no encanto do mistério; é procurar uma certa flor que se combinou pôr no cabelo; é estar triste por ideais amorosos, nos dias de chuva, ao canto de um fogão; é a felicidade de andar melancólica no fundo de um cupé; é fazer toilette com intenção, o maior dos encantos femininos, etc.

Estas pequeninas coisas, que enchem a sua existência, que a complicam em cor-de-rosa, que a idealizam - são a sua grande atracção. É o que amam. O homem, amam-no pela quantidade de mistério, de interesse, de ocupação romanesca que ela dá à sua existência. De resto, amam o amor. Havia muito deste sentimento nas místicas e nas antigas noivas de Jesus. Amavam a Deus porque ele era o pretexto do culto.»


Eça de Queiroz. Uma Campanha Alegre de «As Farpas». LXXXV (Outubro de 1872) Lisboa: Livros do Brasil, 2000, pp. 393-394.

quarta-feira, março 11, 2009

O 'iate' de Eça e as 'pedrinhas preciosas' de Flaubert

«Que é a escrita do Flaubert? - Um museu variadíssimo de formas belas, de numerosas espécies: mas cada uma das páginas desse forte artista afigura-se-me um embrechado de pedrinhas preciosas; dir-se-ia fabricada com fragmentos breves, mecanicamente. Todos valiosíssimos, sem dúvida; mas em suma, pedaços, e de naturezas diferentes. O que pouco senti na elocução dos seus livros foi o movimento de conjunto que vitaliza o todo, a unidade orgânica do agregado; a fluidez, em resumo; o espraiamento, a fluência. E ainda que admitamos que se move aquilo, é um mover-se de elefante que traz um jaez magnífico, e que caminha a passo. Mas o estilo do Eça, comparado ao do Flaubert, é um iate à bolina - a cortar com agudeza, a deslizar rapidíssimo, a balançar-se com donaire sobre o entumescer das ondas. Os períodos, fulgentes, são o perpassar de um velame - e deslumbram quem lê. Tudo ali é vivente, tudo aquilo é nervoso; tudo é brilho, esbelteza, agilidade, graça, à luz que se cincunfunde do seu claro estilo.»

António Sérgio. "Notas sobre a imaginação, a fantasia e o problema psicológico-moral na obra novelística de Queirós". Ensaios, tomo VI. Lisboa: Sá da Costa, 1976 [1.ª ed. 1976], p. 57.

terça-feira, março 10, 2009

Madame Bovary e a cadela Djali


Elle appelait Djali, la prenait entre ses genoux, passait ses doigts sur sa longue tête fine et lui disait:
- Allons, baisez maîtresse, vous qui n'avez pas de chagrins!
Puis, considérant la mine mélancolique du svelte animal qui bâillait avec lenteur, elle s'attendrissait, et, le comparant à elle-même, lui parlait tout haut, comme à quelqu'un d'affligé que l'on console.

Madame Bovary, VII, Première Partie

Contextualizando...


Na capa da Ler deste mês (edição n.º 78), vem destacada uma frase da entrevista a António Barreto. A frase é «O 'Magalhães' é o maior assassino da leitura em Portugal». No editorial que assina, Francisco José Viegas volta a citar a frase e insiste na "ideologia do Magalhães". Com esta apresentação, começa-se a ler a entrevista à espera de encontrar um ataque à distribuição de computadores levada a cabo pelo governo. Mas não é bem disso - ou só disso - que se trata. E a ênfase posta naquela passagem da entrevista pode afastar-nos da ideia que António Barreto apresenta ao longo de várias respostas em que fala sobre a leitura e os livros. Na verdade, a questão é mais geral e prende-se antes com a relação entre informática e leitura; o que António Barreto sugere momentos antes de se referir ao 'Magalhães' é que a Internet e as novas tecnologias que lhe estão associadas constituem uma «ameaça» à leitura, e isto porque a leitura exige «tempo», «tempo de meditação», algo que, supostamente, só o contacto com os livros garante.

segunda-feira, março 09, 2009

Acho que vale a pena citar este texto. Segundo os economistas, não é um "problema estrutural", mas...

«Oprah Winfrey (SIC Mulher) dedicou um dos seus programas à tragédia dos cães e gatos abandonados e, sobretudo, ao meritório trabalho dos asilos que os recolhem, procurando colocá-los em lares onde sejam bem recebidos. Nos EUA, o problema envolve, anualmente, milhões de animais, muitos deles condenados a ser abatidos. Bem sabemos que os dramas sociais estão longe de se esgotar neste problema, mas o modo como é formulado acaba por ser um significativo índice de civilização. Oprah deu uma serena lição de pedagogia social, sem demagogia nem miserabilismo, com um rigor raro nos talk shows.»

O texto é de João Lopes, do Sound + Vision

O amor é uma ideia insensata


O filme mais recente de Woody Allen, Vicky Cristina Barcelona, parte da noção de que existem formas diferentes de entender o amor, mas fá-lo de modo a reflectir sobre aquilo que há de comum nessas formas de pensar o amor, ou de tentar enquadrá-lo racionalmente no plano das nossas vidas. Na verdade, a história de duas americanas - Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson) - em Barcelona mostra que aquilo que existe de comum nas concepções sobre o amor é o facto de serem concepções idealistas no sentido filosófico do termo (e concepções que, quase sempre, a vida se encarrega de refutar). Nesta medida, o filme parece sugerir que a ideia mais coerente ou sensata sobre o amor é, afinal (ou sempre), a romântica, segundo a qual o mundo será sempre um lugar pequeno para albergar o nosso sentimento, ou para responder a tudo o que o "eu" é capaz de conceber. Mesmo para Cristina, que abomina as convenções, o amor significa 'algo que falta'. É o nome de uma 'insatisfação crónica', nas palavras da Maria Elena (interpretada por Penélope Cruz).

sábado, março 07, 2009

Música para o fim-de-semana (e não só)

"And everyone young going down the long slide / To happiness, endlessly."

High Windows

When I see a couple of kids
And guess he's fucking her and she's
Taking pills or wearing a diaphragm,
I know this is paradise

Everyone old has dreamed of all their lives -
Bonds and gestures pushed to one side
Like an outdated combine harvester,
And everyone young going down the long slide

To happiness, endlessly. I wonder if
Anyone looked at me, forty years back,
And thought, That'll be the life;
No God any more, or sweating in the dark

About hell and that, or having to hide
What you think of the priest. He
And his lot will all go down the long slide
Like free bloody birds. And immediately

Rather than words comes the thought of high windows:
The sun-comprehending glass,
And beyond it, the deep blue air, that shows
Nothing, and is nowhere, and is endless.


Philip Larkin

sexta-feira, março 06, 2009

Optimismo na filosofia moral contemporânea, e Heidegger e Sartre num parêntesis

Much of contemporary moral philosophy appears both unambitious and optimistic. Unambitious optimism is of course part of the Anglo-Saxon tradition; and it is also not surprising that a philosophy which analyses moral concepts on the basis of ordinary language should present a relaxed picture of a mediocre achievement. I think the charge is also true, though contrary to some appearances, of existentialism. An authentic mode of existence is presented as attainable by intelligence and force of will. The atmosphere is invigorating and tends to produce self-satisfaction in the reader, who feels himself to be a member of the élite, addressed by another one. Contempt for the ordinary human condition, together with a conviction of personal salvation, saves the writer from real pessimism. His gloom is superficial and conceals elation. (I think this to be true in different ways of both Sarte and Heidegger, thought I am never too sure of having understood the later) Such attitude contrast with the vanishing images of Christian theology which represented goodness as almost impossibly difficult, and sin as almost insuperable and certainly as universal condition.

Iris Murdoch. "On 'God' and 'Good'". Existentialists and Mystics. Penguin Books, 1999 [1950], pp. 340-341

terça-feira, março 03, 2009

Vizinhos inteligentes


segunda-feira, março 02, 2009

Está na altura de umas leituras


Adelaide Claxton, Wonderland, 1860


Está na altura de umas leituras difíceis. Talvez me vá aconselhar com o Passos Coelho. Ele deve ter lido Kant e o problema da metafísica na juventude...

A maravilha em cima veio d'O Silêncio dos Livros.

Sobre o Decameron

Sobre o Decameron: Decameron Web, um projecto do Departamento de Estudos Italianos da Brown University.

Os efeitos do ciúme num ‘animal humano’: sobre “A Sonata de Kreutzer”


A Sonata de Kreutzer (1889), de Lev Tolstói, termina com um pedido de perdão. Quem pede perdão é Pózdnichev, alguém que matou por ciúme e a quem o narrador dá a palavra na novela (enquanto viaja numa carruagem de comboio, o narrador aceita ouvir a história de Pózdnichev). De facto, a obra é muitas vezes apresentada como um ‘ensaio sobre o ciúme’ – o que leva a supor que Pózdnichev é uma espécie de Otelo do século XIX. Mas para além da descrição magistral do ciúme – i.e., dos seus efeitos na percepção que Pózdnichev tem do mundo e dos outros –, há outro aspecto que desperta a atenção durante a leitura: o facto de haver um questionamento sobre o que define a natureza humana. Em vários momentos do discurso, Pózdnichev discorre sobre a diferença entre o comportamento animal e o comportamento humano. E logo no início, há um comerciante velho que diz: «o animal é gado, mas ao homem foi dada a lei» (p. 12). Este comerciante responde a uma mulher para quem o casamento deve nascer do amor, das inclinações, da simpatia – em suma, do sentimento. Em certo sentido, o discurso de Pózdnichev consiste na condenação desta ideia; para ele, o casamento é um mal porque nasce de inclinações que aproximam o humano do animal, mas do animal incompleto, incapaz de se submeter a Deus, à lei: «Se ela [Pózdnichev refere-se à sua mulher] fosse um animal completo, não sofreria tanto, teria fé em Deus […]» (p. 63). E noutras passagens, explicita-se o problema: «uma coisa que só os animais têm, isto é, a ausência de imaginação e de razão» (p. 62); «Quando estávamos sozinhos os dois, quase nos condenávamos ao silêncio, ou então tínhamos conversas que até os animais por certo poderiam ter» (p. 65). Sucumbir depois ao ciúme é (note-se a comparação) perder as características de um animal humano: «Como um animal na jaula: ora saltava do lugar e me aproximava da janela» (p. 99). Com efeito, quando “imagina” (traço distintivo dos humanos) a traição da mulher, Pózdnichev assume: «Mas quem é ela? Como antes, continua a ser um enigma para mim. Conheço-a apenas como animal» (p. 94). Na verdade, só a morte provocará a consciência do carácter "humano" do outro: «Olhei para os filhos, para o rosto dela, contundido e inchado, e pela primeira vez me esqueci de mim, dos meus direitos, do meu orgulho, e pela primeira vez vi nela um ser humano» (p. 112).

Lev Tolstói. A Sonata de Kreutzer. Lisboa: Relógio d’Água, 2007. Tradutores: Nina Guerra e Filipe Guerra.