Foi quando me saiu pela boca fora:
- Que se foda o futuro.
A. Miller. Uma rapariga simples
Há livros que prendem os leitores nas primeiras linhas. Depois, há duas hipóteses: ou convencem ou são um desapontamento. No primeiro caso, a promessa de grandeza e profundidade cumpre-se; no segundo, concluímos, finda a leitura, que poderíamos ter ocupado o nosso tempo com outras coisas. Pertence ao primeiro tipo de livros Uma rapariga simples, de Arthur Miller. Começa assim:
Nessa segunda-feira de manhã, Janice acordou com frio, o que era estranho: parecia que um vento lhe soprava por cima à medida que despertava de um sono profundo, lembrando-se de que era Junho e que na véspera tinha estado calor em Central Park. E abrindo os olhos virada para ele, como de costume, viu que a cara dele estava estranhamente pálida. Apesar de nela ainda ainda persistir o que ela chamava sorriso do sono e da habitual expressão de felicidade nas comissuras da boca. Mas parecia mais pesado em cima do colchão. Percebeu imediatamente e com horror levantou a mão e tocou-lhe na bochecha. Era o fim de uma longa história.
A pequena história de Miller começa, portanto, pelo fim, e isto em dois sentidos: num sentido que se prende com a "diegese", isto é, com a história contada, começando com a morte de uma personagem (Charles), e num sentido que releva da construção da narrativa, porque é o fim dessa narrativa, e aquilo que se segue, ao longo de sessenta páginas, constitui um retrato de Janice, a personagem que acorda ao lado de um morto. A descrição deste momento contém, aliás, um pormenor importante: Janice estava virada para Charles («como de costume») e Charles, saberemos depois, era cego. Ele não a poderia ver, mas isto significava, para Janice, a paz.
Antes de Charles, existiram vários homens. Desses, as figuras familiares representam algo que Janice quis abandonar - como fez, de facto, ao esquecer-se das cinzas do pai, David Sessions, num bar:
- Queres dizer que as perdeste? - Ela desligou, cortando-lhe a palavra, assustada. Tinha deixado o papá no bar. Sentiu uma fraqueza nas pernas à medida que a surpreendia um medo supersticioso. Toda a sua negação ateia da religião colapsou e teve que se recompor. Finalmente, pensou ela, o que é o corpo? Só a ideia de uma pessoa interessa, e o papá está dentro do meu coração. [...] Tentou lembrar-se de um filósofo clássico que talvez tivesse reconciliado as duas verdades, mas cansou-se do esforço.
[...]
Veio-lhe à mente um pensamento estranho: o corpo era uma coisa mais abstracta que a alma, que nunca desaparecia.
O irmão e o primeiro marido, Sam, encontram-se em posições muito distintas mas igualmente insuportáveis. Se o primeiro representa o desejo de enriquecer por especulação (que Janice rejeita assim:
Viver para o dinheiro tem qualquer coisa de errado. Não quero começar.), Sam representa a ideologia incapaz de chegar até à vida e à arte - a ideologia enquanto impossibilidade de ver para além de uma grelha (comunista) de interpretação do mundo. Na verdade, Sam não consegue "ver" Ticiano ou Rembrandt, do mesmo modo que é incapaz de "ver" o que há de inaceitável no pacto assinado por Estaline e Hitler:
Mas era penoso olhar para os quadros dos museus com ele ao lado - ela tinha tirado um curso de história de arte em Hunter - e ouvir apenas de Picasso que ele se tinha convertido ao partido ou sobre os códigos secretos anti-monárquicos escondidos na pintura de Ticiano ou sobre as metáforas da luta de classes em Rembrandt.
A "imensa felicidade" que representará para Janice o amor de um cego, Charles, não se prende apenas com a tranquilidade que advém de não se sentir julgada pela beleza do rosto, ou pela ausência dela. Resulta de algo mais profundo e não muito diferente da verdade sobre pintura que tentara, em vão, explicar a Sam. No fundo, trata-se da possibilidade de a verem de forma justa, porque talvez isso tenha tudo a ver com o amor.
[Sam] - Eles não têm necessariamente consciência disso, claro, mas os grandes nomes estavam sempre em oposição à classe dominante.
[Janice] - Mas, querido, isso não tem nada a ver com pintura.
Arthur Miller. Uma rapariga simples. Lisboa: Editorial Teorema, 1997 (tít. orig. Plain Girl, 1992, 1995). (A tradução portuguesa apresenta alguns erros e gralhas.)