domingo, novembro 30, 2008

Gaffes

Porque isto é mesmo muito bom, merece ser "citado". Outro sketch d'Os Contemporâneos.



Via Arrastão (e, no Arrastão, via Blasfémias)

'Misturar alhos com bugalhos'; 'Não bate a bota com a perdigota'

As expressões deliciosas que dão título a este post foram ditas no programa Eixo do Mal, no momento de uma discussão que hoje foi particularmente acesa (noutras emissões, o recurso a um tom mais entusiasmado fica quase sempre a cargo de Daniel Oliveira). Clara Ferreira Alves e Daniel Oliveira defenderam, contra Pedro Marques Lopes, a leitura política do "caso Dias Loureiro", o caso que durante esta semana deu azo a coisa nunca vista: o embaraço de Cavaco Silva devido a questões que pode(ria)m comprometer a sua "seriedade", algo que nenhum dos comentadores do programa questionou (de certo modo, o atributo da "seriedade" parece estar para Cavaco Silva como o da "coerência" esteve para Álvaro Cunhal). A discussão fez-me reflectir sobre duas coisas: (1) o conceito de "leitura política"; (2) as vantagens de discussões como esta. No momento em que escrevo, uma possível relação entre estes dois pontos leva-me à conclusão de que o lado mais positivo no caso de polícia em que consiste o caso BPN é o facto de, pelo menos, suscitar debates que lembram a existência de um laço essencial entre política e ética, por outras palavras, debates que lembram que o sistema não funciona quando esse laço é quebrado. O lado negativo, claro está, é que o caso pode vir a ser uma prova de que a noção de política como serviço público, como actividade que implica dedicação à res publica, está, para recorrer a uma expressão também nossa, "pelas ruas da amargura".

sábado, novembro 29, 2008

Ainda sobre o centenário do nascimento de Lévi-Strauss

«A France Presse, assinalando a data, chama-lhe "o último gigante do pensamento francês". [...]A obra de Lévi-Strauss, recordam-nos os dois grossos volumes da Antropologia Estrutural, é também a última tentativa de sistematizar filosoficamente a experiência humana, prosseguindo a aventura dos grandes herdeiros do Iluminismo nos séculos XIX e XX (Marx à cabeça). Em certo sentido, ele é o derradeiro pensador da modernidade, embora paradoxalmente tenha posto em causa os seus fundamentos ao dizer que não há uma evolução histórica da magia para a ciência ou do mito para a razão, antes várias racionalidades coexistentes, como sugere em La Pensée Sauvage, Le Totémisme Aujourd'hui ou o delicioso Mito e Significado».

O texto de Pedro Picoito no Cachimbo de Magritte.

sexta-feira, novembro 28, 2008

A arca

Graças ao trabalho desenvolvido pelo Instituto de Estudos sobre o Modernismo, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, já temos isto e isto.

'Máquinas que criam mitos' - sobre os 100 anos de C. Lévi-Strauss

«Se, para Bergson, o Homem seria uma “machine à faire des dieux”, para CLS, parafraseando essa visão, o Homem pode ser visto como uma “machine à faire des mythes” (embora não só, claro: também é natural que produza ciência, que por sua vez se espelha em mitos).»
Hermínio Martins.
O texto completo no blogue Os Livros Ardem Mal.

quinta-feira, novembro 27, 2008

Literatura e sabedoria segundo Harold Bloom


Mas o Sublime nietzschiano, como o de Longino e o de Shelley,
baseia-se no abandono dos prazeres mais fáceis em vista da
experiência de outros mais difíceis. A poesia forte é difícil,
e é memorável em consequência de um prazer difícil,
sendo que um prazer suficientemente difícil é uma espécie de dor.
Hardol Bloom, Onde Está a Sabedoria?

Em cada obra de génio reconhecemos os nossos pensamentos
postos de lado; regressam a nós como uma certa majestade alheia.
Emerson, "Confiança em si", citado por H. Bloom

Onde está a sabedoria?, título editado recentemente pela Relógio d'Água, é a tradução de uma obra que Harold Bloom publicou em 2004 (título original: Where Shall Wisdom be Found?) e dedicou a Richard Rorty. Nas primeiras linhas, Bloom esclarece que o livro «surge de uma experiência pessoal, reflectindo a busca de uma sageza capaz de aliviar e esclarecer os traumas resultantes do envelhecimento, da recuperação de uma doença grave e da dor causada pela perda de amigos queridos» (p. 15). Com efeito, ao longo de três partes/capítulos, Bloom procura reflectir sobre a relação entre a leitura e a procura da sabedoria (ou "sageza", para manter a palavra que me lembro de ter lido pela primeira vez numa descrição de Maina Mendes, romance de Maria Velho da Costa). Dirigindo-se a 'leitores comuns' e tomando como ponto de partida a ideia de que «fiéis ou não, todos nós aprendemos a aspirar à sabedoria, seja onde for que possa estar» (p. 15), Bloom, que se autodefine como «judeu e gnóstico» (p. 236), nunca chegará a tomar como sinónimos "sabedoria" e "conforto". Neste sentido, uma paráfrase justa do seu pensamento será: 'aprendemos coisas com os autores sapienciais (eg. aprendemos a conhecer os nossos limites) mas essa aprendizagem não é uma forma de conforto'.

Na reflexão que desenvolve, Bloom parte da interpretação dos autores que, em seu entender, formularam um pensamento novo e contribuíram para uma redefinição do que somos como ocidentais, ocupando deste modo o panteão dos autores mais "influentes" (sim, Bloom retoma em vários momentos a tese que defendeu em A Angústia da Influência, de 1973, e que agora sintetiza tão bem na frase: «toda a literatura forte é uma espécie de roubo», p. 145). Entre eles, estão os autores do Livro de Job (que ensina uma forma de temor derivada da consciência de que «não possuímos uma linguagem apropriada para os nossos contactos com o divino», p. 24) e do Eclesiastes (que formula uma "sabedoria da aniquilação", mais tarde retomada por Shakespeare), Platão (que pretende rivalizar com Homero e ascender ao lugar de filósofo-educador da Grécia; para Bloom, a melhor interpretação da querela foi apresentada por Iris Murdoch no ensaio "The Fire and the Sun", incluído num volume que citei aqui), Homero (cuja obra, contendo uma concepção da vida como campo de batalha de forças arbitrárias, disputa com os primeiros escritos do Antigo Testamento 'a consciência das nações do Ocidente'), Shakespeare e Cervantes (autores sapienciais da literatura moderna, o primeiro realizando uma síntese única de ideias antigas e modernas, o segundo tratando a 'literatura' como tema), Montaigne (sábio universal e pragmático, que nos leva à aceitação de nós próprios e cujos ensaios são um tributo à lucidez humana), Francis Bacon (uma espécie de poeta da prosa com tendências prometaicas), Samuel Johnson (escritor dado aos aforismos que afirma a vida e nega quaisquer interpretações dogmáticas), Goethe (que legou o ideal da Bildung), Emerson (esse Goethe americano que formulou a doutrina da confiança em si e deixou muitos discípulos; Bloom refere Whitman e poderia ter acrescentado F. Pessoa), Nietzsche ('poeta falhado' defensor de um esteticismo extremo e que percebeu as virtudes cognitivas da poesia), Freud (segundo Bloom, nunca estamos livres de Freud mas Freud, por seu turno, também não conseguiu libertar-se do pensamento judaico segundo o qual tudo é passado e tudo é semanticamente sobredeterminado) e Proust (o romancista que, como nenhum outro, transformou o ciúme em metáfora do "combate estético pela imortalidade"). Na última parte (Sabedoria Cristã), Bloom elabora uma caracterização do pensamento gnóstico (partindo do comentário do Evangelho apócrifo de S. Tomé) e sublinha a importância das reflexões agostinianas sobre o valor da leitura, i.e., sobre aquilo que podemos esperar da relação com os textos.

O texto de Bloom, note-se, é suportado pela possibilidade de estabelecer uma diferença entre autores sapienciais e filósofos. Ao primeiro grupo pertencem escritores como Platão e Shakespeare; no segundo, Bloom inclui figuras da história intelectual do ocidente como Hume ou Wittgenstein. Se a diferença supõe a influência como ideia central, é sempre possível argumentar sobre o carácter influente, ou seja, discutir sobre o cânone. E Bloom é, de resto, um crítico que não hesita em "polemizar" quando se trata de defender os clássicos e o cânone da literatura ocidental. Em Onde está a sabedoria? não faltam as invectivas contra as 'enxurradas' de literatura light (assim como as referências muito pouco simpáticas à administração Bush).


Referência das páginas: Harold Bloom. Onde está a sabedoria?, Lisboa: Relógio d'Água, 2008. Tradução de Miguel Serras Pereira.

Política e formas de amizade

A propósito deste texto, lembrei-me disto:

«Os motivos pelos quais a amizade nasce distinguem-se segundo três formas essenciais; de acordo com esses três motivos, assim também são as respectivas formas de amizade. Há três formas essenciais de amizade e igual número de formas que caracterizam os objectos susceptíveis de amor. Segundo cada uma delas é possível uma afeição recíproca que não passe despercebida, e os que sentem amizade recíproca desejam-se mutuamente coisas boas, com base no modo como definem a sua amizade. Os que definem a sua amizade com base na utilidade não são amigos por aquilo que eles próprios são, mas pelo bem que daí pode resultar para ambos. De modo semelhante, acontece com os que definem a sua amizade com base no prazer, pois não se gosta de pessoas divertidas pelas qualidades do carácter que têm, mas por serem agradáveis. [...]
Mas a amizade perfeita existe entre os homens de bem e os que são semelhantes a respeito da excelência. Esses querem-se bem uns aos outros, de um mesmo modo. E por serem homens de bem são amigos dos outros pelo que os outros são.»

Aristóteles. Ética a Nicómaco. Tradução e notas de António C. Caeiro. Lisboa: Quetzal, 2004, pp. 182-184.

terça-feira, novembro 25, 2008

Pois, há 'outras questões'

«O cineasta e realizador português João Botelho propõe-se fazer a adaptação cinematográfica do Livro do Desassossego. Para quando? Conseguirá ou não apoio? Essas são outras questões.»

Lido na Time Out Lisboa (Novembro de 2008, n.º 60).

segunda-feira, novembro 24, 2008

Apontamento sobre "A Turma"

Este post pretende ser um apontamento. Corrijo: este post só pode ser um apontamento, um texto que se define pela brevidade e (esperemos) pela clareza, porque o filme A Turma (Entre les Murs, de Laurent Cantet) escapa a qualquer interpretação que pretenda reduzir a sua complexidade, a qualquer interpretação que procure, por exemplo, atribuir-lhe à partida um tema. É verdade que a câmara está sempre dentro da escola (no pátio, no sala de aula, na sala do director, na sala de professores, no refeitório) e que, durante a maior parte do tempo, assistimos a uma aula de francês - o que poderia remeter-nos, desde logo, para o tema da educação -, mas também é certo que os momentos de maior tensão no filme correspondem a situações em que alguém abandona a sala de aula. Neste sentido, parece-me que o filme trata, mais propriamente, da capacidade (prefiro "capacidade" a "problema") de resistência à educação que caracteriza o ser humano (e eu gostaria de introduzir aqui o advérbio "felizmente"). Com efeito, a dada altura, um dos alunos dá a entender que é um erro pensar-se que a escola consegue "domar" alguém; certo é que, logo no início do filme, um dos professores exprime a sua impotência, a sua incapacidade de educar, dizendo que os alunos se comportam como animais. A ironia está nisto: se os alunos (as pessoas) fossem como "animais", Pavlov teria resolvido o problema da educação.

Tratar-se de uma aula de Francês, uma aula de língua - língua materna para muito poucos alunos - não é facto despiciendo. A discussão sobre o significado de palavras e expressões que, para alguns alunos, não passam de barulhos sem qualquer sentido, é perfeita como exemplo das dificuldades inerentes ao acto de ensinar. As palavras, como diria um filósofo importante, ganham sentido em jogos de linguagem; e o ponto é que a escola de hoje (dita "inclusiva") tem imensa dificuldade em afirmar-se perante todos os outros jogos. Em certo sentido, o professor da turma de "A Turma" aprende isto mesmo; como consequência do desentendimento com duas alunas, percebe que o significado das palavras não é algo que a escola possa impor.

Por fim, também não será por acaso que o filme termina com uma bela, e justa, descrição do método dialéctico praticado pela personagem principal d' A República. Ao escutar com fascínio a explicação do procedimento maiêutico de Sócrates, explicação apresentada por uma aluna, o professor torna-se o interlocutor visado, ou seja, naquele momento, ele percebe os limites do seu pensamento.

Ainda a propósito da democracia - algumas notas

Na palavras que disse no dia 18, e que muita celeuma causaram, Manuela Ferreira Leite deixou implícita a tese de que é difícil fazer reformas em democracia. Penso que este é o ponto mais importante daquilo que disse. Em traços gerais, houve dois tipos de reacções à tese. O primeiro tentou escamotear o ponto sério, centrando-se em questões de retórica e estilística e dando assim origem a debates que tiveram, verdade seja dita, alguma piada. (O problema que encontro nestas discussões é o facto de se assumir que as discussões sobre palavras valem a pena porque a política é, essencialmente, uma arte de palavras.) O segundo tipo de reacção baseou-se na ideia de que aquela tese revela, muito simplesmente, a simpatia por um modelo político autoritário. De qualquer modo, do meu ponto de vista, podemos (1) considerar que a tese é defensável sem cairmos em autoritarismos, ou seja, podemos afirmar que é difícil fazer reformas em democracia querendo com isso dizer que a essência do “voto democrático” é a possibilidade de escolher caminhos de governação alternativos, ou (2) pensar que a tese só é defensável por pessoas que advogam um regime autoritário alicerçado na ideia, antiga (veja-se o argumento dos livros V e VI da República), de que há seres especiais, iluminados, que detêm um tipo de conhecimento superior ao da grande maioria das pessoas. Sendo possível admitir a primeira destas interpretações, aquilo que importaria saber não é o “grau de ironia” com que MFL disse o que disse, mas antes se as suas palavras comportam um lamento sobre as imperfeições inerentes ao sistema democrático. Não vale a pena citar Churchill, mas parece-me que, a existir esta lamentação, é como se as duas interpretações se fundissem e estivéssemos perante uma ideia sobre a perfeição do modelo político que releva da apologia de um consenso absoluto e inalterável.

sexta-feira, novembro 21, 2008

Está tudo explicado: Manuela Ferreira Leite é divertidíssima e, por isso, precisa de um hermeneuta como assessor (Governo Sombra, 21.11.08)

Rui Miguel Tavares começou por destacar o caso BPN e lamentou a 'aparente' incompetência de Dias Loureiro. Pedro Mexia louvou o facto de o PSD propor uma comissão de inquérito sobre o caso e considerou estranha a permanência de Dias Loureiro como membro do Conselho de Estado. Para Ricardo Araújo Pereira, é "interessante" pensar que todos os envolvidos foram governantes.

Pedro Mexia quis falar sobre a actual situação do partido socialista francês e sublinhou que o momento vivido pelo partido da oposição em França permite reflectir sobre o futuro da esquerda. Rui Miguel Tavares tomou o caso como exemplo do "estilhaçamento" que tem afectado partidos arredados do poder. Mexia destacou também duas notícias que chegam de Espanha: a prisão de um dos líderes da ETA e a desistência de Baltasar Garzón de investigar desaparecimentos ocorridos durante a Guerra Civil e o franquismo (desistência justificada pelo facto de terem morrido todos os acusados).

Ricardo Araújo Pereira escolheu, como Mexia, a pasta dos Negócios Estrangeiros e deixou um aviso à Comissão Europeia: expulsar Durão Barroso pode ter consequências trágicas porque não se sabe quem aparecerá para ocupar o lugar... Mostrou-se também "agastado" com as entrevistas de Manuel Alegre.

Os factos recentes que dão conta de uma ligação da principal claque do Benfica ao tráfico de droga deram azo a observações curiosas. Porque também se fala da mesma situação noutras claques, Ricardo Araújo Pereira considerou que isto é tudo muito bom para estimular a economia da Colômbia e o fair play.

Um tema importante no programa foi o da ironia de Manuela Ferreira Leite. Depois de notarem que muitas coisas que Manuela Ferreira Leite diz não são para levar a sério, os membros do Governo Sombra concluíram que a líder do PSD é muito divertida. Assim, faz falta ao partido um hermeneuta que ajude a esclarecer as subtilezas do discurso.

Sobre a postura de Maria de Lurdes Rodrigues, Rui Miguel Tavares considerou a possibilidade de um "problema genético lusitano" que ajudaria a explicar por que razão os governantes portugueses não conseguem reunir dois traços: vontade de reformar e capacidade de diálogo. Ricardo Araújo Pereira considerou curioso o facto de a ministra ter cedido perante quem atira ovos [esta semana, o título da crónica semanal que assina na Visão é, precisamente, "O ovo da C+S Cristóvão Colombo"].

Os decretos da semana foram: ter os olhos na política americana (Rui Miguel Tavares); que os humoristas norte-americanos continuem a desempenhar de forma genial o seu papel (Pedro Mexia); que Carlos Queirós seja submetido a uma avaliação rigorosa, ficando com menos tempo para treinar (Ricardo Araújo Pereira). Pegando no decreto de Ricardo Araújo Pereira, Mexia reiterou uma ideia: um treinador não pode usar termos como "naïf" em conferências. Daqui a pouco, imagine-se, a discussão sobre o dasein heideggeriano chega ao balneário...

quinta-feira, novembro 20, 2008

Política e interpretação

Neste momento, na Sic Notícias, os elementos do Quadratura do Círculo estão a discutir o que é uma ironia; procuram perceber o que pensa Manuela Ferreira Leite quando fala. Pacheco Pereira diz que é preciso perceber o "conteúdo". António Costa fez uma "piada com ironia"... Lobo Xavier interpretou como um exagero (uma hipérbole, portanto). Isto promete.

«Nem sequer cigarros...» (polémicas)

Teixeira de Pascoaes sobre Fernando Pessoa:

«Não digo que foi mau poeta. Digo que não foi poeta, isto é, nem bom nem mau poeta. E se foi poeta, foi-o só com a exclusão de todos os outros, desde Homero até aos nossos dias... Veja a "Tabacaria": não passa de uma bricandeira. Que poesia há ali? Não há nenhuma, como não há nada... nem sequer cigarros!... Fernando Pessoa tentou intelectualizar a poesia e isso é a morte dela».

Teixeira de Pascoaes. Entrevistado por Álvaro Bordalo (in O Primeiro de Janeiro, ano 82, n.º 140, Porto, 24.5.1950). Ensaios de Exegese Literária e Vária Escrita. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004

quarta-feira, novembro 19, 2008

A Estrada


Há textos literários que pretendem ser uma reflexão sobre o mal, a violência, a decadência - em última instância, uma reflexão que permita perceber quais os fundamentos de que dispomos para atribuir significado às palavras "humano" e "desumano". A Estrada (tit. orig. The Road, 2006), de Cormac McCarthy , é um desses textos. O ponto de partida é a viagem (metáfora antiquíssima...) de duas personagens, um pai e um filho, em luta contra um espaço devastado, um espaço em que o cinzento domina e o único branco vem do céu, literalmente: em forma de neve. A devastação apocalíptica é «a fragilidade de todas as coisas enfim revelada» (p. 25) (uma das expressões de tom aforístico, quase sibilino, que constituem um traço da escrita de McCarthy); pássaros e árvores são coisas que existem «só nos livros» (p. 106). A viagem até ao Sul é uma viagem de sobrevivência e um imperativo, algo que tem de acontecer porque o pai e o filho são "os bons", as pessoas que não comem outras pessoas. Eles transportam, como Prometeu, o fogo.

A existir uma carga simbólica e alegórica no romance, esta é, pode dizer-se, a consequência de uma escrita (escrita irregular, em que as frases longas, sem dar azo a fôlego, alternam com frases curtas, algumas semelhantes a máximas) que deseja aproximar-se do mistério, daquilo que pode explicar o devir do mundo e dos homens - que pretende aproximar-se de um 'mapa do mundo no seu devir'. A possibilidade de ver na história um símbolo não anula a realidade das personagens porque o mistério está nelas: «Havia alturas em que ficava a ver o rapaz dormir e começava a soluçar descontroladamente, mas não era por causa da morte. [...] achava que era por causa da beleza ou da bondade» (p. 88).

Referência das páginas: C. McCarthy. A Estrada. Lisboa: Relógio d'Água, 2007. Tradução de Paulo Faria.

O mal da sabedoria (H. Bloom)

«Que uso poderá ser o da sabedoria, se só nos é possível alcançá-la na solidão, reflectindo sobre as nossas leituras? A maior parte de nós sabe que a sabedoria desaparece no mesmo instante quando estamos em crise».

Harold Bloom. Onde está a sabedoria?, Lisboa: Relógio d'Água, 2008. Tradução de Miguel Serras Pereira.

terça-feira, novembro 18, 2008

Do congresso ao divã: Manuela Ferreira Leite


- Alô
- PSD!!!!! PSD!!!!!!
- Ó Pacheco Pereira, não esteja constantemente a maçar-me para o telemóvel. Eu se quiser saber de si vou ao seu blogue. Olhe, vá ter com o Lobo Xavier, sim, a ver se eu lá estou…

n' Os Contemporâneos

Uma interpretação possível: «Manuela Ferreira Leite não foi feita para isto» (José Medeiros Ferreira, no Bicho Carpinteiro)

Crises

«Fala-se muito de crise financeira. Mas há uma outra crise ainda mais terrível: a crise de ideias para a resolver.»

José
Medeiros
Ferreira, no Bicho Carpinteiro

sábado, novembro 15, 2008

Uma história da objectividade


«Objectivity has a history, and it is full of surprises. Lorraine Daston and Peter Galison chart the emergence of objectivity in the mid-nineteenth-century sciences — and show how the concept differs from alternatives, truth-to-nature and trained judgment.»

O resto da recensão aqui.

Mente, Cérebro e Filosofia (Kant e Hegel)


Não é, bem entendido, The Encyclopedia of Philosophy, editada por Paul Edwards (New York: Macmillan, 1967), talvez a melhor enciclopédia de filosofia que conheço, mas, como já aqui escrevi, recomendo sobretudo pela clareza com que são tratados temas centrais da filosofia ocidental. Sobre o número 3, dedicado a Kant (9 artigos) e Hegel (3 artigos), não diria que foi certeira a escolha de todas as imagens que acompanham os textos (uma característica importante desta publicação), mas mantenho a recomendação e acrescento outra razão: o preço (4.90€).

sexta-feira, novembro 14, 2008

Sobre o 'animal escondido em Sócrates', 'estética não-aristotélica' e outras coisas (Governo Sombra, 14.11.2008)

Os membros do Governo Sombra comentaram o facto de o 'Sr. Silva' ter exigido, a propósito dos recentes acontecimentos no parlamento madeirense, o «regresso à normalidade». Pedro Mexia observou que a noção de 'normalidade', no caso da política do arquipélago da Madeira, está muito próxima daquilo que definimos como 'anormal'.

A respeito do caso recente sobre Manuel Pinho [para mais esclarecimentos, veja-se o editorial da revista Sábado, com o título sugestivo: "Manuel Pinho e o Obama Português"], foi notado que o primeiro-ministro tende a considerar normal o que é 'escandaloso', e a ficar chocado com 'insinuações'. Ainda sobre José Sócrates, Pedro Mexia quis destacar as recentes declarações do primeiro-ministro em que este parece estar 'à beira de esganar Manuel Alegre' (José Sócrates: «Quanto ao Manuel Alegre, já sabemos que ele está sempre a dar razão a toda a gente menos ao Governo e ao PS. Isso é com o Manuel Alegre»). Para o Governo Sombra, estas declarações lembram que há um 'animal escondido' no primeiro-ministro.

De registar ainda a observação de João Miguel Tavares sobre a manifestação de 100 mil professores ('o facto de estar muita gente na rua não significa que essas pessoas têm razão'), uma proposta de Ricardo Araújo Pereira (um sistema de avaliação com cotas para o governo) e o comentário de Pedro Mexia às recentes declarações 'estapafúrdias' de Manuela Ferreira Leite sobre a comunicação social.

Nas notas finais, espaço para uma referência ao caso do despedimento de Joana Morais Varela, directora da Colóquio/Letras, e à utilidade inquestionável do site da FCG que permite consultar os artigos que foram publicados na revista. Sobre cinema, João Miguel Tavares defendeu que é preferível ver o filme que estiver na sala ao lado de Ensaio sobre a Cegueira, com o argumento de que este 'amplia a dose alegórica excessiva da escrita de Saramago'. A terminar, Ricardo Araujo Pereira propõe que se coma uma cenoura torta (uma explicação para esta proposta pode ser lida aqui). Assim, com a melhor piada do programa, advoga uma 'estética não-aristotélica para os legumes' - legumes que, convém lembrar, 'são para meter no bucho'.

quarta-feira, novembro 12, 2008

Metaphysicians and 'misplaced poets' (A. J. Ayer)

«Among those who recognise that if philosophy is to be accounted a genuine branch of knowledge it must be defined in such a way as to distinguish it from metaphysics, it is fashionable to speak of the metaphysician as a kind of misplaced poet.»

A. J. Ayer. Language, Truth and Logic, 1935.

terça-feira, novembro 11, 2008

'Portugalidade' (III)



A propósito da questão da 'portugalidade' (e também a outros propósitos), é recomendável a leitura de Portugal e os Portugueses, livro de Manuel Clemente, Bispo do Porto, que a Assírio & Alvim publicou em Abril deste ano. A obra reúne textos diversos (e com origens diversas), desde textos de vertente ensaística, como é o caso de "Relação entre os Portugueses e Portugal", a entrevistas em que Manuel Clemente fala sobre o papel da Igreja Católica no mundo contemporâneo ou (em tom kantiano) sobre a fé entendida como proposta racional não-relativista («[Bento XVI] acredita que o mundo, a vida, são entendíveis numa base que ultrapassa muito o subjectivismo da sensibilidade ou da circunstância. Há estruturas gerais que nos permitem ser Humanidade e que se desistirmos de chegar lá estará tudo perdido», em entrevista conduzida por José Manuel Fernandes e Raquel Abecasis).

Em "Relação entre os Portugueses e Portugal", Manuel Clemente, preferindo a noção de «densidade» à de «hipertrofia» (proposta por Eduardo Lourenço noutros tempos), defende que é a «densidade interior acumulada» que permite explicar a «infinita capacidade de adaptação» dos Portugueses. No mesmo sentido, sugere ainda que a poesia, o retrato poético do que somos, fortalece a relação 'fundamentalmente bíblica' que os Portugueses mantêm com Portugal. Na secção "Notas de Cultura Portuguesa", encontramos textos que remetem para um tempo em que o autor tinha «vagar para História» e nos quais se argumenta, por exemplo, que o culto mariano releva de uma «devoção nacional» (cf. "Maria na devoção dos Portugueses: uma devoção nacional?"). O argumento, escorado numa enumeração de factos históricos, exige, como qualquer reflexão pertinente sobre a 'portugalidade', um juízo crítico sobre a relação entre a História e a teoria.

sexta-feira, novembro 07, 2008

'Portugalidade' (II)

«[...] a melhor ideia que temos de nós próprios provém da poesia e não da prosa. Desta última guardamos sobretudo o que nos distancia de nós próprios, entre a ironia e o sarcasmo. Pensamo-nos mais altamente à maneira de Camões do que à maneira de Eça. Ou, deste último, recolhemos as páginas mais "poéticas" que nos dedicou n'A Cidade e as Serras

Manuel Clemente, Portugal e os Portugueses. Assírio & Alvim, 2008.

'Coisas Boas'

Joan as Police Woman - To Survive

Patricia Barber - The Cole Porter Mix


quinta-feira, novembro 06, 2008

'Portugalidade' (I)

Há dias, depois de ler a entrevista de Carlos Vaz Marques na Ler, lembrei-me das crónicas que Miguel Esteves Cardoso escreveu no Expresso. Em muitas dessas crónicas, com um humor brilhante, procurou (preparando o caminho para outros humoristas) captar os traços da "pinta" dos Portugueses ("A Pinta dos Portugueses" é o título de uma crónica publicada em Os meus problemas). Esteves Cardoso chamou-lhe "pinta" em vez de "identidade", mas as suas crónicas tratam sobretudo desse 'tema importantíssimo' que é o problema de Portugal ou do "ser português" – segundo Eduardo Lourenço, foram os literatos do século XIX que lhe conferiram uma seriedade especial (note-se que os modos de colocar o problema, as suas formulações, variam; Teixeira de Pascoaes, por exemplo, foi ao ponto de conceber a existência de uma “arte de ser Português”; na edição da Arte de Ser Português que tenho, da Assírio & Alvim, o prefácio é de Miguel Esteves Cardoso).
Na verdade, o problema de Portugal continuou a preocupar durante o século XX outras pessoas, para além dos poetas. Recentemente, José Gil alcançou um feito quase histórico para a “filosofia portuguesa”, colocando no top de vendas um livro que pretende tratar do mesmo problema. Falo de Portugal Hoje – O Medo de Existir. Uma vez que o livro vendeu e continua a vender, convém lembrar a existência de um texto – o de Silvina Rodrigues Lopes, publicado no n.º 3 da revista Intervalo, de Maio de 2007 – que contesta a tese defendida por José Gil. Uma síntese do argumento de Silvina Rodrigues Lopes pode ser lida aqui.
(2007 foi também o ano em que Miguel Real publicou A Morte de Portugal, que mereceria um longo post.)

John McCain

É sem dúvida um belíssimo discurso.

«
Esta campanha foi a maior honra da minha vida.»
John McCain

terça-feira, novembro 04, 2008

Miguel Esteves Cardoso

Numa fantástica entrevista, na Ler de Novembro, Miguel Esteves Cardoso fala

- dos livros de Saramago;

(«Acho os livros dele mal escritos. Mal escritos no sentido de serem convencidos da sua própria grandeza, da importância do que ele diz. É uma espécie de declaração ao mundo. Não uma história. Não um romance. A importância dos livros só se verifica muito tempo depois. Não é uma coisa instantânea. Não é uma questão de declarar ao mundo as minhas ideias. Isso fazem os filósofos e outras pessoas assim. Os romancistas são contadores de histórias.»)

- da relação entre a ética do escritor e a escrita;

(«Se tirarmos os filhos da puta da literatura e da pintura ficamos com nada. Se se tirarem os bêbados fica-se com zero. Se deixarmos só os livros feitos por pessoas que se portavam bem, tratavam bem a mulher, que eram bons amigos e pagavam as contas a tempo, ficamos só com merda. O único autor que foi boa pessoa e ao mesmo tempo um génio é capaz de ser, sei lá, o Beckett.»)

- dos 'escritores boa onda';

(«O Cardoso Pires era boa onda, um gajo porreiro e um grande escritor. O que ele escanhoou e limpou a lingua! Eu gosto dos que lavam a língua. Há escritores que fazem isso. Despojam-na daquele excesso de ornamentação, de adjectivos, de descrições, de mobília, do raio que o parta.»)

- da poesia (i.e., da literatura) portuguesa;

(«Os grandes escritores são todos poetas. A não ser a Agustina».

«Tu lês o Mário Cesariny ou o Herberto Helder ou o João Miguel ou o Joaquim Manuel Magalhães e ficas... O António Franco Alexandre. O Ruy Cinatti. É uma coisa devastadora. Portanto, o problema está resolvido. Pessoa. Camões. Quer dizer, o problema da nossa literatura está resolvido. Não é preciso inventá-la ou reinventá-la. Está escrita.»)

E de outras coisas, claro.

segunda-feira, novembro 03, 2008

'Diferença' (sobre as eleições americanas)

«[Visão] Como vê o Médio Oriente com Obama em Washington, admitindo que ganha?

Não faz a mínima diferença. Se Obama ganhar, manter-se-á o apoio incondicional a Israel. Nestes 30 anos, sempre que houve eleições nos EUA, os árabes disseram: "Esperemos que seja um democrata, eles serão mais justos." Mas nunca mudou nada. Continuaram as bombas, as invasões e os mísseis.

[...]

[Visão] Fala-se agora em conversas com os talibans para acabar com a guerra, no Afeganistão...

[Risos] Eles sempre falaram com os talibans. É como ouvir os israelitas dizerem que nunca falam com terroristas. Em 1992, falando, no Líbano, com antigos prisioneiros palestinianos expulsos, disse a um deles que ia viajar para Israel no dia seguinte. Ele disse: quer o número de casa do Shimon Peres? Deu-mo e estava correcto! Eles falam sempre.»

Robert Fisk, em entrevista à Visão (Visão, n.º 817)

'Mentes socráticas', por Moritz Schlick

«As long as people speak and write so much more than they think, using their words in a mechanical, conventional manner, disagreeing about the Good (in Ethics), the Beautiful (in Aesthetis) and the Useful (in Economics and Politics), we shall stand in great need of men with Socratic minds in all our human pursuits».

Moritz Schlick, Philosophical Papers. Vol. II. (1925-1936), H.L. Mulder & B.F.B. Van de Velde-Schlick, eds., Kluwer: Dordrecht, 1979, p. 369.

Responsabilidades

«Para não variar, logo no primeiro minuto, o CDS/PP tenta, perante as graves irregularidades no BPN investigadas pelo Banco de Portugal e pela PGR, concentrar as atenções nas eventuais culpas de Vitor Constâncio para que não se fale das responsabilidades dos gestores. Não digo que a fiscalização do papel do Banco de Portugal não seja relevante. Mas é interessante que seja a única coisa que preocupa sempre o CDS e o PSD. Foi assim no BCP, volta a ser assim no BPN. Só se espanta quem não sabe o que a casa gasta. Ouvido o CDS, estou muito curioso em ouvir o que tem o PSD a dizer sobre este caso. Basta ver os nomes dos administradores ao tempo a que reportam as irregularides (ou crimes) que levaram o banco a esta situação para perceber porquê.» Isto escreveu um dos suspeitos do costume.

Concordo com um ponto referido por Daniel Oliveira: penso que se fala muito pouco da responsabilidade dos gestores. E lembrei-me, a propósito desta questão, das palavras que Fernando Faria de Oliveira proferiu há algum tempo no Prós e Contras. Numa altura em que o governo preparava o plano para 'aliviar' a banca (i.e., uma linha de garantias de 20 mil milhões de euros), o presidente da Caixa Geral de Depósitos sublinhou, logo no início do programa, que o plano iria beneficiar sobretudo os clientes dos bancos. E justificou da seguinte forma: no caso de uma crise que afecte seriamente a banca, os clientes serão os primeiros prejudicados. Na verdade, em discursos como este nunca é incluída a questão da responsabilidade dos gestores. Como se os gestores fossem seres intocáveis.

sábado, novembro 01, 2008

A Ficção e a História (sobre as eleições americanas)


Sugeriu-se ontem no programa Expresso da Meia-Noite, da Sic Notícias, que a Ficção - cinema e séries televisivas - pode ter ajudado a tornar mais aceitável para os norte-americanos uma ideia que a História tornou menos aceitável: a ideia de um presidente negro. Deu-se o exemplo da série 24, onde surge o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Como já vem sendo hábito no caso de séries televisivas populares, 24 teve direito a uma "aproximação à filosofia". (Talvez menos optimista a respeito da imagem dos americanos que as acções de Jack Bauer promovem é a posição que Ray McGovern defende num artigo sobre tortura. O artigo começa com a citação de uma passagem dos Irmãos Karamazov.)

Espera-se agora, no caso da vitória de Obama, que a realidade imite a ficção só até certo ponto. Na série, segundo me lembro, o presidente negro era assassinado por conspiradores brancos.

Ainda a propósito das eleições americanas, este é um blogue contra a outra senhora.